Pablo-Amaringo4

Como veremos nessas páginas, Mestre Irineu conheceu a bebida ayahuasca na tradição xamânica, e manteve profundo respeito por essa iniciação ao longo de toda sua vida. O termo xamanismo é ainda fruto de fervorosos debates no meio acadêmico, sendo difícil enquadra-lo em modelos teóricos fechados e limitantes. A experiência xamânica, por assim dizer, é uma experiência com o suprassensível, é uma experiência do sentir, área onde a razão cientifica encontra pouco espaço para enquadra-la, defini-la e rotula-la.

O xamanismo lançou às entranhas da sociedade ocidental um desafio ao olhar positivo da ciência sobre a natureza da realidade e da percepção. Esse desafio estremece a compreensão da realidade e do que consideramos mundo. O próprio conceito do xamã, tão debatido atualmente, nos força a olhar e compreender questões muito mais amplas do que a simples definição do termo – sendo o xamã um mediador entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos em sua definição tradicional – um mediador entre as formas de compreender o mundo humano e o sobrenatural. Há uma infinidade de experiências que devemos nos atentar para poder compreender com clareza o valor deste conceito, experiências essas que variam de acordo com cada sociedade e ou grupo que se identifica dentro do xamanismo.

Portanto xamanismo pode e, ao nosso ver, deve ser compreendido como um complexo cultural possuidor de sua própria teia de significados e visões de mundo. Nesse complexo cultural as representações ocupam o lugar de interlocução do ser, sendo o rito expressões simbólicas de uma meta-fala pois, na interlocução entre o todo e o uno, o símbolo se destaca como forma externa de representação cultural.

Compreendemos a prática xamânica como meio de comunicação do ser, que visa expressar uma sensação intima, e para haver comunicação, os símbolos se expressam em formas externas. Os símbolos rituais possibilitam a expressão de vários significados em uma única forma, por isso a experiência de cura faz parte de uma dinâmica realidade, onde há uma experiência hibrida entre a necessidade e os saberes encantados da floresta, quando, no caso do xamanismo ayahuasaqueiro, uma planta é o veículo para a cura e um ente sagrado de reverencia e respeito.

O centro de todo esse processo é o participante, o próprio ritual é a manifestação cultural que emerge através da ação coletiva, pois todos devem compactuar dos mesmos símbolos e códigos que elaboram o rito e transmitem o valor do sagrado. Para compreender a travessia do uso da ayahuasca, temos que ter em mente o processo de expressão, sem o ato de expressão o símbolo não existe.

Ao estudar esses símbolos temos contato com experiências singulares de existência que se projetaram para a ‘eternidade’. Algo aconteceu em um tempo que deu origem a um processo histórico autentico e inovador. Mestre Irineu soube internalizar os sentimentos desse processo, sendo o pioneiro dessa travessia, se aventurando para além das fronteiras do suprassensível, rompendo com limites da existência e suplantando uma nova ordem de culto que hoje doutrina “sábios eruditos”, tendo escrito ele, um caboclo matuto, seu nome na história com maestria. Por isso sendo considerado um ‘mensageiro divino’.

O xamanismo pode ser visto como uma mediação entre a experiência particular e o legado cultural, herança ancestrais mediadas pela perspectiva de singulares representações que trazem em si, elementos de toda uma jornada. O xamanismo desvela que em sua experiência única e inigualável, os ancestrais se fazem presentes. A sabedoria, sagrada em sua cosmologia universal, se faz presente, se manifesta em altos graus de conhecimento, operada em razões diretas em rituais de cura que alteram as dimensões mais raras, as dimensões dos sentimentos, perceptíveis somente aos olhares da sensibilidade em lugares em que a vida traz o brilho de uma aura encantada, viva, onde a tradição do passado existe em harmonia com a juventude do presente. Quando a percepção de uma realidade portadora de uma beleza infinita, expressa seus segredos na ordem superior dos elementos naturais, mantendo os elos que criam significado e sentido para a compreensão humana em uma vida dinâmica, a vida renova sua força em cada ritual de transmissão e criação do conhecimento milenar dos povos da floresta.

As pessoas que procuravam por cura nos tempos de Irineu eram pessoas que estavam lançadas aos caos e ao abandono, não sobravam recursos para adquirirem os medicamentos que lhes prescreviam, e eram geralmente doentes em estado grave, muitos em iminência de morte, na mais precária condição, fatalmente lançados ao aniquilamento total se não fossem submetidos a tratamento especifico regular. Esse tratamento veio pelas mãos dos curandeiros, pajés e xamãs. 

A condenação ao aniquilamento total foi sublimada e superada por uma série de experiencias caboclas que encontraram no legado xamânico dos povos da floresta, inspiração e instrução. Nova experiencia entre homem e natureza foi aprendida pelos bravos nordestinos que descobriram o véu da floresta e foram iniciados no universo de segredos, encantos e mistérios das “Plantas Sagradas”, plantas de saber e de poder que trazem nova visão à mente. 

O legado do xamanismo curandeiro também aproxima estas experiencias para além das fronteiras dos Estados Nacionais, a amazônia gerou um elo cultural por características próprias nas realidades dos seringais, que mesclavam experiencias sociais além das fronteiras nacionais. O terror e a violência denotam a lógica das engrenagens do capital na extração da borracha. Métodos de domínio, calcados na tortura, na escravidão e no medo, estratégias do endividamento foram mantidas a força. Ambientes onde a doença se proliferou em modos sutis e pantanosos, o xamanismo, ao tratar as moléstias do corpo, realizava um verdadeiro mergulho na consciência de seus iniciados, ressignificando o terror, a violência e a escravidão, ao implantar uma relação com o sagrado, ressignificando a vida e isso é grande, saltando aos olhos do abstrato e projetando os sonhos de esperança e libertação.

Ordem e caos numa única expressão de existência encontrando o ponto de equilíbrio nas mãos daqueles que esqueceram o medo e ergueram a visão para além do bem e do mal. O caminho da cura está nas zonas de visões, comunicação entre os seres terrestres e sobrenaturais, putrefação, morte, renascimento e gênesis. A vitima, ao defrontar com o espectro do mal em sua própria mente através da visão com a ayahuasca, desperta em si a força do guerreiro ancestral e supera as fraquezas da limitação humana, se encanta com os encantos da natureza, e mesmo face a face com a própria putrefação de seu corpo, mantém o olhar além dos olhos do algoz.

Esse jogo de imagens é libertador, mas aos olhos da ignorância é uma condenação a morte: a razão não sabe captar a mensagem do silêncio. Os curandeiros, xamãs e pajés desmontam o sistema de domínio ocidental por dentro de suas artérias. Exemplo esse que Raimundo Irineu Serra soube aprender com maestria. 

O xamanismo ayahuasqueiro manifesta a ideia de comunhão sagrada por meio de uma bebida capaz de promover a expansão da consciência. A eficácia dessa experiência de expansão se mostra na vida cotidiana, se manifestando por meio de transformação da visão de mundo e da conduta de cada indivíduo. A vida de mestre Irineu nos mostra a jornada de um peregrino que que se lançou em busca de superações práticas e respostas ‘inatingíveis’, que ao andar por caminhos misteriosos e secretos, retornou da floresta portando o segredo de uma grande revelação. Em um piscar de olhos lançou à eternidade e edificou um novo modo de comunhão de uma bebida tão antiga, transmigrando a experiência cabocla a outras fronteiras, rompendo os limites de uma travessia e vislumbrando outros horizontes.

Mestre Irineu cristianizou a comunhão da bebida, imprimindo a ela uma nova identidade, mas em suas próprias acepções de realidade e de sobrenatural, manteve a herança do xamanismo, num gesto de respeito ao saber antigo, Mestre Irineu reconhecia o nome do sacramento indígena, mesmo levantando o rogativo pela expressão “Daime” sempre dizia que a bebida era a “Uasca” e que ele era “uasqueiro”. Por longos anos sua mão manteve firme o comando da travessia, foram quase 60 anos seguindo firme por esse caminho. Irineu viveu sua vida com honra e dignidade, sem jamais ter nada a esconder de quem quer que seja, se tornando o Mestre Imperador Juramidam.