O século XX foi um século marcado pelos extremos e pelo início da tentativa de estabelecer um projeto de civilização, onde os ‘donos do poder’ se digladiaram para conseguir cumprir sua agenda. Assim, as potências mundiais usaram da tecnologia e avanço cientifico para criar artefatos para destruição em massa da humanidade. Se a visão de mundo de tais potências não fosse aceita a destruição contra os ‘inimigos’ aconteceria em uma escala jamais vista antes.

O século XX foi um século contraditório, marcado por superações de limites e rompimento de barreiras ao mesmo tempo que a condição de existência foi lançada às mais degradantes situações. O avanço da tecnologia foi gigante trazendo inúmeros benefícios, ao mesmo tempo que foi utilizada para criar as cenas mais cruéis da história.

O século passado tornou visível a luta (insana) dos donos do poder entre si e a luta pela sobrevivência de uma grande humanidade feita cativa. Potências mundiais donas de terra e gente, em guerra pelo poder, usando todo o conhecimento e tecnologia para instrumentalizar sua catástrofe.

Os extremos vividos no século XX lançou um imenso desafio: Como ser humano em um mundo em que a crueldade não é mais notada? Ser humano com equilíbrio e sabedoria para superar as limitações e degradações do meio social e construir em seu campo um belo jardim, alimentando a esperança de vida e felicidade para si e em consequência para toda a humanidade. Uma humanidade doentia e sedenta por sangue e morte, em um mundo de caos e paradoxos. Esta foi a condição em que o mundo se encontrava quando a ayahuasca começou a penetrar nos centros urbanos.

Raimundo Irineu Serra chegou na Amazônia no início do século XX, junto com o movimento de retirada de borracha da floresta que foi utilizada nas Guerras Mundiais. Nesta jornada recebeu o conhecimento ancestral do xamanismo sobre a ayahuasca pelas mãos dos caboclos, e assim construiu sua trajetória rumo ao sagrado, trazendo a vida a forte tradição do daime. Sempre pelo rogativo de paz e cura à humanidade.

A realidade dos seringais era austera e sofrida, recebendo influencias diretas do contexto histórico das catástrofes, que afetaram a cultura e a mentalidade das comunidades ayahuasqueiras dos seringais, constituindo doutrinas em meio a toda a atmosfera pesada e negativa que estava presente na vida e no cotidiano daquelas pessoas.

Os seringais da Amazônia eram verdadeiras maquinas industriais fornecendo látex para as Guerra Mundiais, sendo esse o caldeirão que irá forjar as primeiras culturas de transição do xamanismo ancestral para o mundo contemporâneo. A própria mentalidade dos seringueiros e pioneiros desta cultura de transição era parte da sociedade em que viviam.

Os trabalhadores dos seringais eram arregimentados entre as populações miseráveis da própria Amazônia, populações que sofriam a destruição social provocada pela invasão europeia e consequente domínio político, econômico e social das elites brancas. As populações de origem indígena, vítimas da exclusão histórica, encontraram na realidade de desagregação social, a força propulsora que os conduziu aos seringais.

Outros trabalhadores foram arregimentados no nordeste do país, e foram chamados de ‘soldados da borracha’, expressando a atmosfera das guerras. Trabalhadores nordestino em fuga da seca e da miséria, também causada pela ação predatória da colonização portuguesa e posteriormente pela elite branca, migraram rumo à floresta com sonho de fazer a vida e viver feliz. Trazendo determinação para vencer muitos obstáculos e a expectativa de um mundo melhor encontraram com a ayahuasca e reencontraram um sentido de vida, renascendo em espirito e esperança, curando moléstia do corpo e da mente, assim nascia um novo movimento de pensamentos e sentimentos, que daria origem a algo novo, unindo os tambores da África, a fé da cristandade popular e a herança do xamanismo amazônico.

A lógica de exploração e domínio dos seringais funcionava a partir da relação de dívida entre os trabalhadores e as empresas multinacionais. Os retirantes nordestinos já se tornavam devedores desde a partida da terra natal, quando as despesas da viagem eram custeadas pela empresa contratante. Uma dívida estrondosa diga-se de passagem. Restava aos seringueiros tentar sana-la trabalhando duro, contudo nem sempre a temporada fornecia matéria-prima suficiente, de acordo com o discurso dos patrões.

O preço pago pelas empresas pela borracha bruta era totalmente irrisório. Era um sistema de exploração organizado, parasitas do capital remontaram a mais cruel e desumana das condutas sociais, a escravidão. Uma vez atolado em dívidas o caboclo nordestino estava em total dependência dos patrões dentro de uma floresta densa e desconhecida. Com o passar do tempo  os míseros ordenados de sua lida não eram suficientes para sua própria sobrevivência, muito menos para sanar as dívidas do passado, tampouco as dívidas do presente.

Essa era a realidade experimentada pelos habitantes dos seringais no final do século XIX e início do século XX, todos eles eram vítimas de um processo que ainda fez uso de torturas e execuções, com requinte de crueldade, para estabelecer a lógica do medo, do caos e da morte como “ordem social” e moeda de troca, fatores que visavam aumentar a produção através do domínio pelo terror. A escravidão por dividas era institucionalizada e mascarada por contratos de trabalho. Consórcios internacionais de empresas eram estabelecidos em parcerias com os Estados Nacionais, rentáveis lucros davam aos barões da borracha de Manaus, o luxo de acender charutos cubanos com notas de 100 dólares em salões de festa em Paris. Tais consórcios chegavam a contar com força militar privada, que tinha domínio sobre a vida e a morte das pessoas por eles submetidas. 

loucura

Tal estado de terror e morte recebeu um novo sentido a partir da sublevação da loucura e da insanidade. As forças de velhos paradigmas de bruxaria, feitiçaria e magia se despertaram com intensidade capaz de subverter a ordem estabelecida pela crueldade, indo além da insanidade do meio social, os bravos peregrinos tiveram que criar as próprias bases de sobrevivência para lançar um olhar além da loucura e criar um novo e sublime sentimento de fé acima do caos.

O ‘parto’ deste “Novo Mundo”, começou com muito sangue e muitas dores, mas elevando sua consciência para além da violência, a comunhão da ayahuasca possibilitou a reconstituição da dignidade da condição humana, de tal forma, que suas plantas podem ser consideradas revolucionarias, uma vez que proporcionaram a alteração e transformação do “estado das coisas como elas são”. Ayahuasca diz não à morte e subleva a barbárie através de sentimentos de vida, beleza, harmonia e fraternidade.

Assim nos seringais a medicina dos naturalistas (ou vegetalistas) atravessou as fronteiras da travessia humana e implantou uma nova experiência com o sagrado e com o suprassensível. Através da experiência intima com a ayahuasca os peregrinos conseguem continuar a caminhada, superam os fragmentos da dor, dando vida ao novo movimento de religiões de confissão cristã fundamentadas essencialmente na comunhão da bebida sacramental, sintetizando as experiências próprias de purgação dos males e ascensão ao divino e sobrenatural.