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Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro, em São Vicente de Ferrer no interior do Maranhão, era descendente de uma numerosa família, filho de Sanches Martinho de Matos, e Joana Assunção Serra, tendo herdado o sobrenome de seu pai: Matos. Seus pais tiveram outros filhos, totalizando sete. As passagens da infância de Irineu possivelmente se perderam no vácuo do tempo por falta de registro. Sabe-se que ainda garoto seu pai faleceu, tendo ele ido morar com um casal de tios de quem era afilhado, o padrinho Paulo Serra, mantendo residência em sua terra natal.

Raimundo Irineu adotou o nome Serra em respeito ao padrinho. O jovem Irineu se criou na roça com influência do catolicismo popular, crescendo também cercado pelos terreiros dos Tambores das Casas de Mina, cobertos pela ‘Encantaria Sagrada’ da nação Mina-jeje. Sobre seu ano de nascimento por muito tempo foi divulgado que teria sido em 1892, muitos estudiosos e muitas pessoas da tradição do Daime divulgaram essa data mas, recentemente, descobriu-se que foi em 1890, por uma pesquisa feita no Arquivo Paroquial de São Vicente Ferrer. A partir dessa evidência concluímos que Irineu nasceu 2 anos após a abolição da escravatura, tendo sido ele possivelmente filho de escravos (a tradição oral da doutrina aponta como sendo neto de escravos).

Mestre Irineu venceu as adversidades humanas, se fez grande guerreiro e testificou o valor do sagrado em sua jornada, deixando um legado espiritual que hoje é recordado com carinho e admiração. Sua jornada humana em nada desmerece o valor de sua obra. Ainda em vida ele se tornou um mito, fator que demonstra o respeito alcançado por um homem que viveu com dignidade e honra a trajetória que lhe coube. Soube ensinar seus companheiros os preceitos elevados de sua missão espiritual, que busca o aperfeiçoamento constante da condição humana através de uma conduta séria e responsável da comunhão da ayahuasca e nos embates da vida. Buscamos nesse espaço apenas fortalecer a memória da experiência desse ser humano, que soube erguer com maestria o saber transmitido pelo xamanismo e pela bebida sagrada.

Ser humano e ser grande, um valoroso legado que ele nos deixou em reverência a ayahuasca, que foi respeitosamente chamada por ele de Daime. A história do Daime e a história do Mestre se fundem em uma só. Uma vez ele cunhou a frase: O Daime Sou Eu! Eis a força de seu legado. Ele estava certo! Narramos aqui a trajetória daquele homem que atravessou o destino com destemor e confiança em sua fé.

Desde sua infância, Mestre Irineu narrou interessantes histórias de contato com uma distinta senhora que lhe disciplinava em sonhos. Como qualquer criança peralta sempre que aprontava alguma coisa, essa senhora a noite aparecia em seus sonhos pegava a sua mão e lhe dava uma lição.

Essa história percorreu gerações e anunciou o primeiro sinal da ‘missão sagrada do mestre’, que inicia pelo aparecimento de Nossa Senhora da Conceição na infância e depois na jornada com ayahuasca, sendo o marco fundador da tradição espiritual da “Doutrina da Rainha”. Sendo assim, a Senhora já viria trazer disciplina, lhe preparando para a jornada espiritual, que exigiria muita disciplina a ele e a seus discípulos.

O motivo da partida de Mestre Irineu do Maranhão à Amazônia é controverso e segundo a tradição oral existem duas versões, em uma conta-se de um romance que ele viveu no Maranhão e de um conselho dado por seu padrinho Paulo Serra para que ele primeiro conhecesse o mundo antes de casar. Em outra relata-se que houve uma confusão em uma noite de festas por aquelas bandas da baixada maranhense que acabou em briga, motivando-o a zarpar para os seringais, pois ele teria sido jurado de morte. O fator relevante para nós é compreender a perspectiva histórica do período e o contexto da leva migratória do Nordeste em busca de melhores condições de vida, a fuga da miséria, da fome e da seca.

Independente dos motivos que o levaram a migrar para o Acre, é sabido que Mestre Irineu já tinha ouvido falar da possibilidade de ‘enricar’ com o trabalho da borracha, alguns conterrâneos seus já tinham migrado para lá e mandado boas notícias, entre eles estavam dois primos: Antônio Costa e André Costa, que mais tarde marcariam profundamente a história de Mestre Irineu e da ayahuasca no Brasil.

Nesses tempos de sua juventude, além da lida na roça com as plantações, Irineu trabalhava na criação de gado e também como leiteiro, desses trabalhos ele conseguiu juntar o dinheiro necessário para a ida a capital e de São Luís viajou rumo ao Pará, navegando pelo mar. Na Amazônia trabalhou em Belém como jardineiro entre outros afazeres, sobrevivendo com dificuldade.

Ele deixou registrado em seu hinário esse momento:

Equiôr Equiôr Equiôr

Equiôr que me chamaram

Eu vim beirando a terra

Eu vim beirando o mar

Quando papai Paxá

Barum Marum mais eu

Saudade saudade

Saudade de mamãe

A tua imagem linda

É meus encanto(s) enfim

Neste mundo e no outro

Vós se alembrai de mim

O amor que eu te tenho

Dentro do meu coração

É vós quem me guia

No caminho da salvação

Quando papai me chamar

Toda vida obedeci

Quando chegar este dia

Eu só tenho que ir.

Ao chegar a Manaus se encontrou com outros peregrinos nordestinos que ao Acre iam trabalhar, com o mesmo sonho de ‘enricar’. De Manaus chegou a Rio Branco, lugar de passagem, pois seu destino eram os seringais e para isso rumou para Xapuri, mas foi em Brasiléia que em sua trajetória foi encontrar o objetivo que o fez viajar por tantas terras e águas, localizou outros retirantes e fez seu primeiro compromisso de trabalho para os seringais.

Sabe-se que Irineu logo fez amizade com um encarregado chamado de ‘patrão’ o responsável por sua contratação, deste episódio narra-se que o tal patrão se afeiçoou pelo jovem do Maranhão de saúde forte e corpo robusto. Previu que seria bom seringueiro e que lhe traria muito dinheiro. O encarregado alegou para Irineu ter boas recordações dos maranhenses, dizendo que “burro nenhum conheceu”, seguindo com a pergunta: “Seu moço, sabe ler e escrever”?

O destino pregava uma peça em Irineu, em uma escola jamais pisara, resultado da exclusão da sociedade ingrata, que trouxeram os escravos de longe para depois abandona-los sem assistência. Ele que estava ali para trabalhar com a seringa se viu na berlinda com a pergunta. Reza a lenda que sem pestanejar Irineu respondeu: “Eu sei ler sim senhor”.

Pela grandeza de seu caráter testificado ao longo de sua vida, podemos imaginar a angustia e a vergonha que deve ter sentido, mas seu destino era a floresta e não seria uma bravata destas que iria lhe desviar. Por outro lado apesar da berlinda, se manteve calmo e sereno, não se deixando abater pela situação, mantendo seu sonho de riquezas e agora de uma boa educação, que teria que alcançar por si próprio.

Conta-se que ao chegar a colocação, um dia recebeu a visita de um noteiro que andava pela floresta trazendo pedidos da cidades, mantimentos, roupas, alimentos, cachaça e munição. O jovem negro de calos na mão fez um pedido que ninguém jamais havia visto, pediu a cartilha do abc.

Um simples passo, um grande salto que lhe trouxe compreensão, seria por seu próprio esforço e mérito a luta pela vitória, vencendo os obstáculos com dignidade e dedicação. E, assim, se pôs a estudar, letra por letra, seu destino a conquistar, labutando com firmeza, dentro da floresta numa só direção.

De tão simples, um grande legado nos resta, cabe a cada um aproveitar o exemplo de perseverança e determinação, sem ficar preso a lamentações por um passado sombrio, o jovem Irineu, que se faria Mestre, deu a volta por cima e segurou o destino na palma da mão, sendo autodidata o início de sua educação. Mais tarde Irineu contava que de uma mentira precisou fazer verdade.

Desta simples e intensa jornada, num tempo mais distante, muitos doutores e eruditos bebem o Daime e seguram na mão o caderninho com os “Hinos” do Mestre Imperador Juramidam, demonstrando que aquele desafio no meio da floresta um dia teria outra serventia, aprendendo a escrever os Hinos que o espírito ensina, transmitindo seu legado de grande responsabilidade. Com o passar do tempo seus versos voaram para longe daquele chão, criando a Doutrina da Rainha, testificando o sagrado em devoção, com amor e respeito à antiga comunhão dos índios e caboclos, a origem da missão.

Não há muitos relatos sobre a história pessoal de Irineu em sua encruzilhada pelas matas. Sabemos que vida brava era a dos seringueiros, muito trabalho, dedicação e solidão. Seus companheiros mais próximos ficavam em outra colocação, bem distante dentro daquela imensidão. No mínimo dois dias de viagem eram necessários para qualquer contato.

Essas são histórias de agentes anônimos da história, sonhadores em busca da felicidade que o mundo lhes negou, gente simples, honesta e honrada esquecidos no vão do tempo, cuja existência não se perdeu porque transmigrou para outras mentes e corações, chegando até aqui.

Viva Mestre Irineu!

Viva a Rainha da Floresta!

Viva Mestre Imperador Juramidam!