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Afastado de seus parentes e companheiros mais próximos Irineu viveu esse início de jornada por aquelas terras, edificou sua morada em uma choupana de madeira e palha. Naqueles tempos assistência médica ou saúde pública eram inexistentes e justamente por isso Irineu foi conduzido ao encontro dos velhos curandeiros que lhe trouxeram ensinos, rezas e raízes, o ensinando pouco a pouco o universo misterioso do xamanismo.

Lentamente Irineu percorreu os caminhos misteriosos das culturas ancestrais, onde a experiência é mestra da sabedoria, até que um dia ocorreu o encontro que o levaria à ayahuasca. Foi com Antônio Costa, seu primo, que seu caminho foi selado. Para a tradição do daime este já era o caminho predestinado pela Rainha da Floresta. Raimundo Irineu Serra canalizou a força de um movimento histórico de profundas transformações na comunhão da ayahuasca. Ele demarcou uma fronteira temporal, há o antes e o depois de sua existência. Tal é seu legado.

Segundo a tradição oral há duas versões sobre esse encontro, na primeira delas Mestre Irineu chegara ao Acre já com o propósito de encontrar com seus primos, buscando informações sobre a localização desses na região. Tal encontro ocorreu seguindo o curso natural das atividades nos seringais, possivelmente com os irmãos Costa buscando encontra-lo assim que souberam que um conterrâneo desembarcara por aquelas terras. Em outra versão um dia o Mestre recebeu a visita especial em sua choupana, era Antônio Costa, sem que ele esperasse seu primo aportou em sua colocação, chegou navegando em uma chalana, ao se deparar com ele Irneu ficou surpreso e maravilhado, iniciando uma longa amizade.

Antônio era um regatão, comprava e vendia borracha da floresta. A partir desse momento passaram um tempo juntos e dessa experiência houve a instrução de Antônio a Irineu sobre a antiga tradição Inca de comunhão da bebida sagrada, usada naqueles tempos por índios isolados e caboclos ribeirinhos. Fato marcante é que iriam viajar para o Peru para conhecer esse mistério.

Segundo a tradição Mestre Irineu foi informado por seu primo que havia um caboclo de nome Pisango, ele era peruano descendente dos Incas e conhecia a bebida. Irineu dizia que Pisango ‘sabia onde as andorinhas voavam’. Esse nome é importante para compreender os caminhos do mestre, pois mais tarde seria citado também como um ancestral encantado e não como um homem encarnado.  Esse encontro foi de fato um marco na história da ayahuasca em nosso país.

Sobre a intenção de conhecer a bebida também encontramos duas versões, em uma delas os pioneiros teriam interesse em conhecer a “uasca” sem especificar interesse. Em outra versão, reza a lenda que Antônio Costa contou a Irineu que dentro daquelas matas havia o mistério de uma bebida vinda do Peru, que ouvira falar muito em suas viagens, uma poção mágica que poderia fazer a pessoa enricar, mas para isso primeiro deveria invocar o ‘demônio’ e depois firmar um pacto.

Assim, teria sido desse modo que nosso saudoso Mestre Irineu recebeu a primeira notícia sobre a ayahuasca, sem fazer ideia que há muito tempo aquela bebida já era um tesouro sagrado para a cultura de muitos povos daquelas terras.

Nos seringais percorria uma história contada pela Igreja de Roma que a bebida dos povos antigos eram uma ‘poção diabólica’ que enfeitiçava aqueles que participassem dos rituais dentro das matas fechadas. Juravam os clérigos romanos que quem bebia desta poção fazia o tal pacto com diabo para ganhar riqueza no mundo material. Raimundo Irineu Serra teria escutado atentamente o que Antônio Costa lhe dizia e ambos estavam nas mesmas pelejas de sacrifícios, assim decidiram ir juntos ver se era verdade. Segundo tal versão Irineu pensou: “até hoje eu fui um homem justo e não estarei pecando contra Deus se eu for ver se esta história é verdade”.

Para a tradição do daime essa versão é um tabu, tornando-se um assunto evitado e até mesmo proibido em muitas comunidades daimistas. A nós nos cabe dar voz as diferentes versões com o intuito de compreender o lado humano, sem buscar a mistificação. A vida do Mestre testifica sua obra e se a intenção realmente foi essa, em nada diminui a grandeza de seu caráter.

Continuando nossa narrativa, em um dia marcado foram as terras dos antigos incas, avistaram a caboclada, perguntaram se poderiam participar e logo tomaram parte do ritual. O decorrer do ritual é um mistério, poucas palavras ficaram guardadas na memória, se houve cânticos, tambores ou chocalhos pouco se sabe. Apenas que a ayahuasca foi servida numa cuia e em um tanto bem reforçado.

Os relatos dizem que um determinado momento todos começaram a gritar por satanás, mas não há nenhum registro sobre a tradição vegetalista onde a ayahuasca era e bebida e se gritava por satanás. Possivelmente os Íkaros da tradição foram assim interpretados pelas pessoas, o que denota apenas falta de conhecimento e em certa medida discriminação cultural.

Seguindo essa linha narrativa, Irineu também teria começado a chamar pelo demônio, aguardando que ele aparecesse de uma vez por todas para resolver logo sua situação, contudo, quanto mais chamava pelo tenebroso, mais apareciam cruzes em sua visão: uma cruz, outra cruz, inúmeras cruzes das mais diversas formas e tamanhos, até que então ele compreendeu: ‘o diabo foge da cruz, assim eu ouço falar’. Portanto se chamava pelo diabo e apareciam cruzes, ‘aquele chá não era do capeta coisa nenhuma’, sentenciou o jovem, deixando a história do diabo de lado e se abrindo ao que ayahuasca teria a mostrar, passando a viver coisas lindas e maravilhosas.

Essa história do pacto foi relatada pelo mestre em pessoa, como exemplo de aprendizado que teve, demonstrando humildade ao reconhecer que de início chegou a dar algum valor ao que era repassado pelos clérigos romanos. Por 500 anos os povos antigos foram e são perseguidos, em busca do extermínio de suas tradições e modo de vida que eram e são diferentes e estranhos aos olhos preconceituosos dos ocidentais. Não há novidade que a ayahuasca teria sido vinculada ao demônio, uma espécie de ‘divindade maligna’ que ocupa um importante posto na mente de muitos equivocados sinceros em diversas religiões.

Ainda em sua primeira experiência com a ayahuasca, Mestre Irineu contava que dentro da viagem que ia fazendo, uma voz veio e lhe perguntou: “Tu quer ver o Maranhão? Olha aqui vou lhe mostrar”. Seguindo viagem, ele teria visitado sua terra natal, podendo escolher para onde olhar, encantando sua visão e seu coração e esquecendo de uma vez por todas o ranço da colonização no discurso preconceituoso em questão. Nenhuma revelação, nenhum segredo além foi revelado, nem sua futura missão com a Rainha da Floresta. Posteriormente Mestre Irineu rebatizaria a bebida para o nome de Daime, manifestando nesta expressão um rogativo de amor à Divindade Universal.

Retornando ao Brasil ainda na chalana de seu amigo Irineu teria dito a Antônio que nada de mal vira naquele ‘chá’ e se algum ‘demônio’ apareceu ‘foi só para aquela gente’, pois com ele a coisa teria sido diferente. Com seu amigo compartilhou a experiência da visão de todas as cruzes e da viagem ao Maranhão e terras além. Para seu primo também foi uma experiência marcante, fazendo despertar nos dois a vontade de nova comunhão.

Segundo os relatos, passado pouco tempo, já em sua choupana, Irineu, ao compreender melhor tudo o que lhe ocorrera, perguntara a Antônio Gomes: “Como será que os caboclos fazem aquele cozimento?”.  Antônio respondeu que o cozimento vinha de um cipó e uma folha, o cipó uma vez machucado com a folha era misturado e juntos com água e fogo eram cozidos. Irineu perguntara então se ele conhecia as plantas e se sabia onde as encontrava, tendo a resposta que havia em todo lugar e que todo o povo da região sabia o que era, mas que nem todos realmente conheciam. Com paciência e entusiasmo andou com o amigo pela mata identificando as plantas sagradas, conhecendo as plantas pela forma e nome que os caboclos conheciam, recebendo também a instrução que aquela bebida era antiga tradição de um reino já desaparecido.

Mestre Irineu teve essa primeira experiência por volta de 1912 ou 1914. Em 1911 foi encontrado pela primeira vez Machu-Pichu, o que levou uma efervescência nos seringais e despertou nos caboclos de origem indígena um grande sentimento de identidade cultural, revivendo os elos de uma espiritualidade ancestral. Esse ambiente marcou profundamente o início da caminhada de Mestre Irineu, trazendo a sua mente uma gama de conhecimentos repassados por aqueles que eram legítimos guardiões das recordações ancestrais pela força da tradição oral.

Seguindo a narrativa, Antônio Costa segue viagem pelos rios da floresta continuando sua jornada de regatão, marcando novo encontro quando retornasse. Irineu prosseguiu com seu trabalho de seringueiro, esquecendo a história do capeta, mas sem esquecer a vontade enricar, ainda mais que suas dividas aumentavam com o ‘patrão’. Não se sabe ao certo os caminhos de Irineu com a ayahuasca nestes dias de aflição, solidão e saudade por aquelas matas. O legado da tradição atribui à terceira experiência o início da Grande Revelação com a Rainha da Floresta. Sendo esse o marco fundador da tradição do daime.

Segundo relatos Irineu conheceu melhor as plantas que lhe foram apresentadas, até que um dia decidiu ir buscar na floresta e preparar sozinho em sua cabana no meio da mata. Machucou o cipó, colheu as folhas, misturou tudo com água em sua panela de feijão. Realizando o trabalho fez aquela misteriosa poção, pronta para beber e cozida por ele mesmo, quando foi comungar veio o receio de precisar de ajuda e não ter a quem recorrer. Decidiu aguardar o retorno de seu amigo para realizarem o trabalho juntos.

Quando Antônio chegou se assustou com a ideia do jovem Irineu, dizendo: “não vamos fazer nada, você não conhece, como vai fazer sozinho uma bebida dessa? E se o efeito der errado?”. Diante do impasse Irineu desafiou seu amigo: “tu diz que é homem e agora vai correr?”. Com o ultimato Antônio não recusou o desafio e ambos tomaram a bebida. A parti dai ambos contaram uma linda experiência de grande integração com a natureza, perderam o medo e prosseguiram no caminho.

Essa versão não encontra respaldo em diversos depoentes da tradição. Há de se pensar no misticismo da história de Irineu, sem conhecer o modo de preparo, fazer de imediato a bebida. Outra versão aponta que Irineu aprendeu com os índios do Peru o modo de confecção da bebida.

Não há registros ou relatos de como teria ocorrido o segundo ritual de Irineu com a ayahuasca, ficando de um lado a narrativa aqui demonstrada por outro a possibilidade dele ter ido novamente ao Peru para nova experiência com os vegetalistas. No entanto, foi nesse episódio que Irineu recebeu a mensagem através de um ‘amigo’ de uma distinta senhora de nome Clara, deixando uma tarefa que se cumprida lhe entregaria uma importante missão.