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Bem-estar subjetivo e qualidade de vida

Lizardo de Assis, C., Faria, D. F., & Lins, L. F. T. (2014). Bem-estar subjetivo e qualidade de vida em adeptos de ayahuasca. Psicologia & Sociedade, 26(1), 224-234.

*Trechos Selecionados por nós, adaptações foram feitas no texto original.

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Resumo

O artigo estuda o bem-estar subjetivo dos adeptos de ayahuasca, a partir dos conceitos de qualidade de vida e bem-estar subjetivo. Discute os estudos que tratam da beberagem do chá nos rituais religiosos e a percepção desses sujeitos em relação a esses elementos psicossociais. Metodologicamente, o artigo relata os resultados de uma pesquisa qualitativa, de revisão bibliográfica e dados coletados em campo, com quatro sujeitos. Como resultados, destaca-se a existência de um bem-estar subjetivo a partir das seguintes categorias: desenvolvimento do autoconhecimento, favorecimento à prevenção ao uso/abuso de drogas, um maior domínio de si e do ambiente, além de uma melhoria no relacionamento social. Defende-se, finalmente, a relevância científica de estudos sobre este tema contemporâneo a fim de enriquecer o conhecimento de novos processos de subjetivação, de fenômenos socioculturais e de territórios com interfaces com a Psicologia.


meditacao

Ayahuasca é um produto vegetal psicoativo  pode ser chamada de substância enteógena, porque provoca estados alterados de consciência (EAC) que levam a fortes alterações em toda forma de percepção e “ajudam a maximizar as experiências de estimulação visual e as sensações de contato com forças e locais sobrenaturais e divinos”. Durante o EAC ocorre o chamado transe, ou viagem, em que o sujeito tem a sensação de viver outra relação com o mundo, consigo mesmo, com sua identidade e com seu corpo.

De acordo com MacRae (1992), o uso de psicoativos ocorre historicamente em muitas regiões do mundo, mas é nas Américas que se apresenta com maior concentração e frequência. Quanto ao seu uso, devem ser considerados a atuação da substância na fisiologia do corpo humano, o estado psicológico do indivíduo e o meio físico, social e cultural no momento do uso. Timothy Leary, um dos grandes divulgadores dessa visão tripartida, nos anos 60 do século passado, dizia que para a “viagem de ácido” ser uma experiência harmoniosa e tranquila, tanto o estado de espírito do viajante (set) quanto o meio ambiente (setting) deviam estar em harmonia.

Nas décadas de 1960 e 1970, os estudos de Leary provocaram interesse em pesquisas sobre xamanismo e estados alterados de consciência e, assim como ele, vários pesquisadores foram buscar, em campo, rituais indígenas nas Américas Central e do Sul, onde as substâncias psicoativas eram a causa dos estados de transe (MacRae, 1992). Foram necessárias comparações transculturais para registrar as variadas formas de consumo das substâncias e para definir o papel marcado das crenças, atitudes, expectativas e valores que contribuem para a estrutura da experiência com esses enteógenos (MacRae, 1992).

As práticas xamanísticas persistem até hoje, mesmo tendo sofrido modificações e influências consideráveis, resistindo à colonização ibérica, à atividade missionária e à economia da borracha. Esses acontecimentos mudaram radicalmente a região e levaram ao êxodo dos habitantes da floresta para os grandes centros urbanos locais; entretanto, os curandeiros ou vegetalistas ainda mantêm os antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas, o uso e a relação com o mundo espiritual (MacRae, 1992).

As receitas de preparação de ayahuasca variam de acordo com os grupos que adicionam diferentes plantas, dependendo de tradições e dos fins a que ela se destina. Os índios dizem tomar para ver o mundo de onde vem todo o conhecimento, e os vegetalistas dizem que é dela que vem o espírito forte, chamando-a de “doutora” ou “professora”. As plantas “doutoras” são aquelas que, além de produzirem estados alterados de consciência, produzem tontura, têm fortes qualidades eméticas ou catárticas e provocam sonhos especialmente vívidos (Santos, Moraes, & Holanda, 2006).

Análises químicas revelaram que a Banisteriopsis caapi contém os alcalóides de beta-carbolina: harmina, harmalina e tetrahidroharmina, e as Psichotrias contêm o alcalóide alucinógeno N-dimetiltriptamina (DMT) (Rose, 2005, p. 9). Esta substância, tomada sozinha e por via oral, é inativa, mesmo em altas doses, devido à atuação da monoamina oxidase (MAO), presentes no fígado e no intestino delgado (Rose, 2005, p. 9). Mesmo que as beta-carbolinas estejam em doses relativamente baixas para manifestarem suas características alucinógenas, elas desempenham um papel de inibição da MAO, permitindo que o DMT entre em ação com suas propriedades psicotrópicas e atinja o sistema nervoso. Náuseas, formigamentos, aumento da temperatura corporal são alguns dos efeitos somáticos que aparecem aproximadamente vinte minutos após a ingestão do chá. Em seguida, por volta de uma a duas horas, iniciam-se os efeitos cognitivos, que desaparecem gradualmente em aproximadamente quatro horas (Garrido & Sabino, 2009).

A experiência dos efeitos do chá é chamada de “estado visionário”, que é quando o sujeito percebe os objetos vibrando e brilhando no ambiente; cenas e movimentos rapidamente surgem e podem ser vistas com os olhos abertos ou fechados. Essas alterações na percepção e cognição não evitam os usuários de se localizarem no tempo e no espaço, ou de falarem de forma coerente. Vale ressaltar que as reações de um indivíduo são particulares e não podem ser previstas, sendo dependentes de cada sessão (Schimzinger citado por Garrido & Sabino, 2009, p. 29). O uso de psicoativos raramente é prejudicial aos adeptos, e na maioria das vezes sua ocorrência é no contexto de um ritual em culturas tradicionais, sendo que, nessas experiências, são comuns os relatos de percepção alterada do tempo, o papel dos animais em mostrar ao homem as propriedades das plantas, o papel da música em provocar as visões, doação de vida espiritual às plantas e fenômenos paranormais como telepatia e precognição (Dobkin de Rios citado por MacRae, 1992, p. 22).

Segundo Labigalini (1998), alguns sujeitos tiveram mudanças profundas em suas vidas, reestruturando sua conduta diária e recebendo uma orientação para o mundo à sua volta. O autor aponta que as características dos estados de consciência vivenciados com a ayahuasca, a inserção social em um novo grupo e a regulação dos rituais através de leis sociais foram as causas dessas mudanças.

Mabit (citado por Santos, 2006, p. 365) expõe que observações realizadas em oito mil casos de ingestão de ayahuasca com acompanhamento terapêutico permitem afirmar que esse consumo possui muitas indicações, sem relatos de dependência, sendo que a expansão da percepção do corpo, da sensação e do pensamento permitem que o indivíduo aprenda a confrontar seus problemas a partir de uma nova perspectiva e de maneira autônoma.

Há várias abordagens que diferem na definição e avaliação quanto à qualidade de vida das pessoas ao decorrer do tempo: a economia analisa a qualidade de vida da população pela quantidade de bens e mercadorias por elas produzidos; já os cientistas sociais acrescentam a esta última teoria, importantes e consideráveis indicadores sociais como expectativa de vida, distribuição justa dos recursos, entre outros; uma terceira abordagem que, aliás, vem crescendo consideravelmente nas ultimas décadas, é a de BemEstar Subjetivo (BES), que considera a avaliação subjetiva da qualidade de vida (Giacomoni, 2004).

Como afirmam Diener, Suh, Lucas e Smith (1999, citado por Albuquerque, Noriega, Coelho, Neves, & Martins, 2006), o BES refere-se às respostas emocionais e julgamentos acerca da satisfação que o indivíduo sente de si mesmo e do ambiente no qual se encontra; à avaliação de suas próprias experiências de vida e, sendo elas positivas ou negativas, um dos componentes principais para esse bem-estar e promoção de vida saudável é a felicidade.

Siqueira e Padovam (2008) relatam que, enquanto os filósofos ainda discutem esse enigma do estado de felicidade, nas ultimas três décadas, pesquisadores vêm se empenhando em formular conhecimentos acerca do bem-estar e comprová- lo cientificamente. São esses estudiosos que, após décadas de pesquisas, inseriram o conceito de bemestar no campo científico da psicologia e o converteram em um dos temas mais debatidos e empregados para a compreensão dos fatores psicológicos que integram uma vida saudável.

Para Passareli e Silva (2007), é de suma importância procurar conhecer cada vez mais o BES, uma vez que ele traz benefícios ao modo como enxergamos a nós mesmos e aos outros, resultando em um maior contentamento nas vivências cotidianas e nos relacionamentos sociais. De acordo com Otta e Fiquer (2004), o BES é resultante de uma influência vantajosa de estados emocionais positivos sobre a saúde fisiológica, podendo acontecer como consequência direta dessa saúde, como recursos psicológicos gerados por estados emocionais positivos ou pela motivação de comportamentos importantes para a saúde.

De um modo geral, os estudos sobre o BES e a felicidade são compreendidos sob três aspectos:

1. “Estar no controle da vida” – segundo Csikszentmihalyi (1999, citado por Costa & Pereira, 2007, p. 74), estar no controle da vida diz respeito àqueles indivíduos que acham importante e de grande valia tudo o que realizam, e dependem menos de recompensas externas, ou seja, possuem motivação intrínseca. Seria a “felicidade aprendida” por meio de um desenvolvimento psicológico.

2. Estado (estar feliz) – é o resultado de várias ocasiões de felicidade na vida. É o vivenciar eventos prazerosos no dia a dia e relacioná-los aos afetos positivos, acumulando experiências felizes. Esta seria a forma de perceber a felicidade através de uma série de necessidades humanas fundamentais e universais (bottom-up, ou “de baixo para cima”) (Costa & Pereira, 2007, p. 74).

3. Traço (ser feliz) – essa abordagem assegura que os indivíduos têm uma predisposição para interpretar situações cotidianas de forma tanto positiva quanto negativa, e essa predisposição seria o que influencia a avaliação da vida. A pessoa utilizaria os prazeres porque é feliz, e não o contrário. Pela perspectiva topdown, ou “de cima para baixo”, a interpretação pessoal dos eventos é o que primeiramente influenciaria o BES, ao invés das próprias circunstâncias objetivas, como dito anteriormente pela abordagem bottom–up. Pesquisas estudam se essa interpretação é devido à personalidade, ao processo de adaptação ou ao coping (Giacomoni, 2004).

Segundo Ryff e Keyes (citador por Giacomoni, 2004, p. 45), a interpretação de bem-estar subjetivo acontece através de itens independentes, com aspectos psicológicos positivos, sendo eles: (a) Autoaceitação – quando a pessoa se percebe e relata fatos passados de maneira positiva; (b) Crescimento pessoal – a pessoa compreende que cresce e se desenvolve gradativamente; (c) Sentido de vida – quando os objetivos e significados estão claramente definidos; (d) Relações positivas com outros – as relações são avaliadas como satisfatórias; (e) Domínio do ambiente – habilidades de controlar a própria vida e o meio; e (f) Autonomia – sentimento de iniciativa.

Segundo Schultes e Hofmann (citados por Santos et al., 2006, p. 364), há indicativos de benefícios do uso de enteogenos, como auxiliares no tratamento de dependência e uso abusivo de álcool, tabaco e outros psicoativos, interferindo no bem-estar dos indivíduos. Sendo assim, essas pesquisas são de grande importância, já que ampliam o acervo científico de estudos voltados a esses temas e possibilitam a comprovação de eficácia de novas terapias. Nesse sentido, este estudo objetivou identificar, na literatura científica nacional dos anos de 2000 a 2010, e em dados obtidos em campo, a percepção de bem-estar subjetivo (BES) e de qualidade de vida em indivíduos que consomem a ayahuasca.


Resultados e discussão

1. Em relação à categoria “Autoconhecimento”:

Durante o efeito do chá, o sujeito consegue se ver fora do próprio corpo e também entra em contato com o que é mais próprio e profundo de si. Com isso, ele se percebe no mundo e define quem é e quem não é. Quando desenvolvido o autoconhecimento, o sujeito se percebe e compreende tudo à sua volta com mais clareza e honestidade. Isso facilita as atividades diárias, bem como as relações interpessoais. Ele passa a conhecer melhor as próprias emoções e comportamentos.

O consumo do chá traz para o sujeito a reflexão de alguns aspectos que modificam comportamentos. Comunicar-se de modo mais sensível com o ambiente, fazer parte da comunidade, repensar valores aprendidos, limpar-se de coisas negativas e aprender novas maneiras de confrontar as situações cotidianas são alguns elementos que provocam, no indivíduo, o esclarecimento de quem ele é e como ele reage no mundo. São esses os elementos que desenvolvem o autoconhecimento, entendido como aprimoramento do conhecimento de si, tal como descrito em alguns dicionários. Mas, para além do contexto em que se insere a ayahuasca, ressalta-se, aqui, a importância do autoconhecimento, como apontada por alguns pensadores, pois a motivação pessoal, quando tornada consciente, é relevante para o estabelecimento de uma vida saudável, na medida em que a pessoa aprende a observar seus comportamentos e, consequentemente, a manejar a si mesma e as condições em que vive.

2. Em relação à categoria “Tratamento da dependência”:

Há relatos de grupos terapêuticos, de antropólogos, psicólogos e psiquiatras sobre a eficácia terapêutica da ayahuasca no tratamento da dependência de psicoativos. No entanto, deve-se registrar a existência de falhas de pesquisas realizadas sem bases sólidas ou fundamento em estudos com desenhos metodológicos rigorosos. Assim, o sucesso do tratamento não depende somente da farmacologia da ayahuasca, mas também das normas do contexto ritual, do zelo religioso, da influência do líder e da dinâmica social do grupo. Além disso, não pode haver dissociação entre a ingestão do chá, o processo psicossocial e o contexto ritual em que esta bebida é consumida. A religiosidade é destacada nesses rituais, e é um fator importante para que um sujeito pare de consumir substâncias psicoativas. Além dos efeitos psicológicos e comportamentais do chá, questões como recomendações, normas e punições dentro do grupo religioso são os fatores que, em conjunto, fazem uma pessoa abandonar uso de substâncias psicoativas.

3. Em relação à categoria “Domínio de si e do ambiente”:

Durante o transe induzido pelo chá, o indivíduo afirma uma liberdade individual de pôr em prática tudo o que viu na miração, adequando ao seu modo de ser. Isso se dá por meio do aprendizado com a ayahuasca, que fornece ferramentas para controle do ambiente. Por meio das imagens percebidas durante as mirações, o indivíduo percorre mundos (físico e espiritual) e questiona a sua existência, desenvolve uma espiritualidade que busca equilíbrio, aprendendo, assim, a se transformar manejando sua vida. Devido a essas mirações, o sujeito passa a confrontar seus conhecimentos a priori com a razão construída a partir de então. O aprendizado com a ayahuasca permite que o indivíduo adquira conhecimentos sobre exercícios de práticas de bem-estar, como cuidados com o corpo (dietas e abstinências) e desenvolvimento de autocontrole. O domínio de si também pode ser visto na categoria autoconhecimento, e o cuidado com o corpo na categoria tratamento da dependência.

4. Em relação à categoria “Relações sociais”:

Após as mirações, os sujeitos trocam e compartilham as visões, sensações e percepções dentro do grupo. Dessa forma, eles interpretam aspectos das mirações uns dos outros, fortalecendo o vínculo do grupo. Também, com a ajuda do grupo ou de um membro mais próximo, o sujeito desvenda verdades que sozinho não conseguiria contemplar. Toda essa vivência dentro do grupo religioso é aplicada também na vida social fora da instituição.

O aprendizado induzido pelas mirações e pela comunicação produz mudanças positivas nos comportamentos com familiares e amigos. Tornam-se relações mais pacientes e amorosas por parte do sujeito ayahuasqueiro. Essas práticas sociais dentro do grupo religioso também influenciam a tomada de decisão de parar de consumir substâncias psicoativas e diminuir ou abandonar hábitos alimentares considerados poucos saudáveis. Essas decisões podem ser vistas nas dietas e abstinências dentro da categoria tratamento da dependência.


Análise das emissões verbais dos sujeitos/entrevistas de campo

1. Em relação à categoria “Tratamento/Prevenção à dependência química”:

A vida social dos indivíduos, antes de sua inserção na religião, era geralmente regrada por festas que continham bebidas e substâncias químicas. Atualmente, os sócios compartilham outra visão de socialização, nas quais não há mais a necessidade do uso dessas substâncias. Uma característica presente no álcool é a estimulação o cérebro fazendo com que o sujeito fique desinibido e eufórico, e faça coisas que normalmente não faria. Nessas condições, portanto, ele não tem controle de seus comportamentos e atos, o que não é recomendado pela religião.

O sujeito aponta um estilo de vida anterior, de uso de drogas, marcado por uma mudança no que se refere aos cuidados da saúde de forma geral. A conscientização advém do processo ritual do consumo do chá, das normas do centro ao qual esta inserido, e até mesmo da condução da sessão. Mesmo não sendo um indivíduo classificado como dependente químico, por não possuir comportamentos compulsivos em relação às drogas, ele adquire comportamentos de prevenção aos novos hábitos decorrentes do sistema de pensamento e do processo ritualístico.

2. Em relação à categoria “Sentido de vida”:

Elementos de bem-estar como paz, equilíbrio, felicidade e conforto se articulam com a presença da divindade, o que parece fornecer sentido para a vida presente e futura. Entende-se, aqui, sentido de vida quando os objetivos e significados estão claramente definidos. O sujeito vive em uma constante busca por propósitos e significados em sua vida. Essa busca se dá por meio de questionamentos sobre o objetivo de sua existência no mundo. A resposta, tida como espiritual, é procurada nas mais diversas religiões, porém, somente após o consumo do chá e as visões por ele produzidas, é que fazem com que o indivíduo acredite que tenha encontrado essas respostas e se sinta inserido no mundo, tendo uma melhor compreensão sobre as coisas que faz e suas motivações.

O indivíduo relata dúvidas e questionamentos que impediam a definição de objetivos claros na vida, o que pode ser entendido como a falta de alguma coisa que ele não sabia identificar e que lhe causavam inquietação. Ele cita questões como pós-morte e reencarnação como possíveis respostas que o chá oferece. A obtenção de respostas sobre a vida e a mudança de sentido por esse entendimento são vistas como positivas. O sujeito encontra, no efeito no chá, a possibilidade de sentir uma força que pode ser comparada à manifestação do espírito santo, que não era sentida em outras buscas. Essa força pode ser nomeada como o sentido para a vida.

3. Em relação à categoria “Crescimento pessoal”:

O crescimento pessoal é observado quando a pessoa compreende que cresce e se desenvolve gradativamente. O desenvolvimento ocorre subjetivamente, ou seja, a pessoa se volta para si mesma, para as suas potencialidades, para o seu lado espiritual de forma autônoma, sem necessitar de outrem para que isso aconteça. Uma das formas visíveis desse desenvolvimento é quando o sócio troca os graus, sem fazer distinção de raça ou classe social, valorizando a individualidade de cada um, uniformizando o linguajar para que haja compreensão e entendimento de todos. Dessa forma, todos possuem a mesma chance de subir nessa hierarquia como simbologia espiritual.

Através das mirações, o sujeito olha e analisa os seus próprios comportamentos, sentimentos e ações, passando a se autocorrigir. Essa mudança torna-se mais fácil porque a miração contempla a possibilidade de ver e sentir um fato como se estivesse acontecendo em tempo real. Há, assim, uma maior consciência do próprio eu e, com isso, a compreensão da necessidade da transformação do modo de agir. O adepto realiza uma autoavaliação positiva acerca das mudanças em sua vida, após o seu crescimento pessoal e social. É possível fazer uma análise do progresso sobre o antes e depois da inserção na religião, por meio de questões como a paz e as relações sociais satisfatórias.

4. Em relação à categoria “Relações sociais positivas”:

Esta categoria se subdivide em duas subcategorias:

As relações de amizade e de trabalho -> Para obter uma relação positiva com os demais, há a conscientização de que deve haver um autoconhecimento e cuidados consigo mesmo, a fim de que seu bem-estar repercuta nos demais. O diálogo é trabalhado para que o sujeito tenha a visão dos conflitos e dos comportamentos inadequados que esteja produzindo, e também para que saiba escutar os apontamentos dados pelo próximo. Essa prática é realizada e acatada pelas opiniões oferecidas pelos discípulos e outras pessoas que fazem parte do convívio social.

Um dos aprendizados encontrados é a valorização da amizade do outro, independente de classe social ou etnia. Isso pode ser verificado na distribuição igualitária de afazeres, para que todos aprendam a respeitar o próximo. Mesmo havendo hierarquia de responsabilidade, todos tem o mesmo tipo de tratamento e deveres que os demais, dando, com isso, exemplo de humildade, de responsabilidade e respeito ao outro como ser humano, e não apenas por ser uma “autoridade”.

São reforçados os laços sociais por meio do voluntariado e do companheirismo. Dessa forma, ninguém fica sobrecarregado de trabalho e todos cumprem suas tarefas igualmente, divididas para que se obtenha resultados eficazes e progressivos. Todos os ensinamentos e condutas aprendidos dentro do contexto religioso do chá devem repercutir na vida social fora da instituição, ou seja, no trabalho, em casa e nas atividades de lazer. Mesmo que o sujeito possua um grau mais elevado, ele aprende que não há distinção na forma de tratar as pessoas e que as relações sociais se constroem de maneira pacífica.

As relações familiares -> Os ensinamentos motivam a valorização da família e das pessoas de modo geral, fazendo com que não haja apenas pensamentos voltados para si e para o bem-estar individual, mas sim das demais pessoas à sua volta e, sobretudo, dos familiares. O indivíduo alcança um sentimento de estar completo e feliz, ao ver sua família também inserida na religião, pois ambos, família e religião, caminham lado a lado em sua vida, não existindo a necessidade de dividir-se ou dar prioridade a um ou a outro.

5. Em relação à categoria “Aprimoramento da cognição”:

Cognição é o processo de conhecer, de aprender, em que estão incluídos os pensamentos, a atenção, a percepção, a memória e o raciocínio. Após a inserção da ayahuasca no cotidiano do sujeito, sua memória fica “graduada”, ou seja, o adepto usa essa terminologia para explicar que ele passa a regular a cognição para prestar mais atenção no ambiente em que vive e nas coisas que acontecem ao seu redor. A consequência é uma melhor percepção e compreensão, não somente nas suas mirações, mas também nos estudos, na cultura e nas relações com os outros. Entende-se que ele observa tudo com mais acuidade e, por isso, a memória fica mais treinada.

O chá tem um sentindo conotativo, para seus adeptos, de “tirar o véu dos olhos”, respondendo dúvidas existentes, o que lhes proporciona uma visão mais abrangente de tudo o que lhes acontece e também de suas causas. Essas consequências, nas formas de percepção, podem ser entendidas, aqui, como implicações do estado alterado de consciência, que é o transe, ou viagem, no qual o sujeito tem a sensação de viver outra relação com o mundo, consigo mesmo, com a sua identidade e com o seu corpo, por efeito das fortes alucinações. Isso é o que os adeptos chamam de graduação da memória e é um dos principais efeitos do chá. A alteração da consciência se deve aos componentes alucinógenos, e as visões são resultantes da condução das cerimônias pelos mestres por meio das músicas e das verbalizações.

A energia sentida ao consumir essa beberagem proporciona uma atenção e concentração mais aguçadas aos estímulos do meio, oferecendo maior capacidade de compreensão e interpretação. Os sujeitos relatam ver as coisas além da objetividade, que passam a desenvolver o senso crítico e a formular suas opiniões, ao compreenderem tudo o que acontece em seu cotidiano. Há uma ampliação da visão e da consciência, que proporciona um olhar mais sensível aos acontecimentos, fazendo-os observar a realidade não mais de forma generalizada, e sim com profundidade, cada vértice que compõe a situação ou o problema. Segundo os relatos, essa mudança na consciência não traz prejuízos, e é possível, após o consumo do chá, dar continuidade às atividades diárias, mesmo que elas exijam um grau de atenção como dirigir.

6. Em relação à categoria “Autoconhecimento”:

O “cozimento” e o processo em que ocorre permitem, como efeito, o desenvolvimento do autoconhecimento. É o conhecimento de si, uma vez que influencia o sujeito a voltar as observações e avaliações para si, para os seus pensamentos no contexto subjetivo e, no âmbito material, para tudo o que possui. É construída uma relação de benefício entre a situação que precisa ser recarregada e o chá que oferece energia. Isso se torna fácil quando o sujeito julga se autoconhecer e autocompreender-se em vários contextos.

Ademais, é destacada uma importância significativa aos próprios desejos e aos sentimentos, passando a não apresentar apenas os comportamentos desejados pelas outras pessoas. A segurança e confiança de permitir-se ser o que acredita é visualizada novamente no relato de um sujeito que explica que o chá admite que ele se examine, que ele veja pontos em que precisa melhorar e se sinta em paz com isso.

7. Em relação à categoria “Autonomia”:

A miração provocada pelo chá mostra ao indivíduo as coisas que ele fez e as possibilidades de mudança, estimulando a iniciativa e a liberdade de autocorrigir ou não. O desenvolvimento da autonomia, que se dá por meio do sentimento de iniciativa, ocorre de dentro para fora. O sujeito vê nas mirações a legitimidade e veracidade das decisões a serem tomadas, sendo ele totalmente ativo e presente no processo de definir como se comportar e formular o que é certo ou errado.

8. Em relação à categoria “Religiosidade”

O chá de ayahuasca tem a função de ensinar ao sujeito a realizar uma ligação com a divindade, com Deus, porque assim ele acredita que obterá o conhecimento das causas dos problemas. Essa busca por soluções remete o adepto à necessidade de transformações das práticas de paz e de harmonia com a sociedade e com a natureza. Os adeptos do chá acreditam que é pela natureza que se chega à Deus, e é o chá, o sagrado da natureza. A fala do sujeito permite entender que foi somente após o consumo do chá que houve um encontro com Deus. Anteriormente, se dizia ateu e aprendeu, com os os ensinamentos do chá, a realizar uma ligação com o divino.


Considerações finais

Foi pensando nos efeitos da bebida em rituais religiosos que se procurou estudar as mudanças percebidas pelos sujeitos após o consumo do chá e sua relação com a qualidade de vida e bem-estar subjetivo. Como foi dito, o Bem-estar subjetivo (BES) é considerado como a avaliação subjetiva da qualidade de vida e refere-se às respostas emocionais e julgamentos acerca da satisfação que o indivíduo sente de si mesmo e do ambiente no qual se encontra.

Buscou-se identificar, na literatura científica nacional – entre 2000 e 2010 – e em dados obtidos em campo, por meio de entrevistas, a percepção de bemestar subjetivo e de qualidade de vida em indivíduos que consomem ayahuasca. Na literatura, foram encontrados elementos que levaram à formulação das seguintes categorias: Autoconhecimento; Tratamento da Dependência; Domínio de si e do ambiente e Relações Sociais. Pelos relatos verbais coletados em campo foram identificadas as seguintes categorias: Tratamento/Prevenção da Dependência Química; Sentido de vida; Crescimento pessoal; Relações Sociais Positivas – e suas subcategorias, Relações de Amizades e Trabalho e Relações familiares -; Aprimoramento da Cognição; Autoconhecimento; Autonomia e Religiosidade. Essas categorias foram defendidas como mudanças em decorrência do consumo do chá e percebidas pelos sujeitos como melhorias na sua qualidade de vida.

Foi possível, ainda, comparar os achados na literatura com os dados obtidos em campo sobre bem-estar subjetivo, após o consumo da ayahuasca. Notou-se que os dados da literatura foram condizentes com os dados coletados em campo, sendo que estes últimos trouxeram um acréscimo de informações com um número maior de categorias: Sentido de vida; Crescimento pessoal; Aprimoramento da cognição; Autonomia e Religiosidade.

Observou-se, também, relatos sobre a eficácia terapêutica da ayahuasca no tratamento e como elemento preventivo da dependência de psicoativos. No entanto, deve-se ressaltar o contexto religioso e psicossocial em que a bebida é consumida, pois, as normas e recomendações dentro do grupo são fortes influências para que o sujeito adquira práticas de bemestar, inclusive o abandono de uso de substâncias.

A beberagem de ayahuasca ainda é um assunto pouco conhecido pela população em geral, provocando rejeição e até preconceito, o que limita a sua compreensão. É relevante também, procurar conhecer sobre o Bem-Estar Subjetivo, uma vez que é um ponto crucial que traz benefícios no modo como enxergamos a nós mesmos e aos outros, resultando em um maior contentamento nas vivências cotidianas e no relacionamento com parceiros. Outro benefício desses estudos pode ser o de distinguir aspectos relacionados ao consumo de ayahuasca e o seu efeito sobre o bemestar, afim de melhor compreender a condição humana em contextos similares.

No entanto, esta pesquisa qualitativa, de base bibliográfica e de campo, não pretende generalizações, para grandes populações, dos resultados encontrados em alguns sujeitos, pois teve finalidade exploratória de produzir um maior conhecimento do tema, e apontando também a necessidade de novas pesquisas de campo dada a escassez de estudos com enfoque nesse tema. Considerando que, no Brasil, nos últimos dez anos, poucos estudos foram realizados nessa área a partir de uma visão psicológica, novas pesquisas serão de grande importância e relevância científica, já que ampliam o acervo de estudos voltados para esses temas contemporâneos e possibilitam o conhecimento de novos processos de subjetivação, de fenômenos socioculturais e de territórios para interfaces com a Psicologia.

Em relação às limitações da pesquisa, elencamos a possível relação entre o contexto religioso, institucional e vivencial como fatores ou variáveis decisivos na produção do bem-estar subjetivo e da qualidade de vida expressa pelos sujeitos. Tais fatores e variáveis podem ser investigados em outros estudos, posto que podem colaborar para as vivências apontadas no presente estudo.


Referências: visite o artigo original

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