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O símbolo da Pantera e a busca pela autoidentidade. [Parte 01]

Contam os sábios antigos, naquelas conversas ao redor da fogueira em noite enluarada, entre uma pitada e outra do cachimbo sagrado, em momentos onde até a natureza silencia para ouvir a inspiração divina, que há muito tempo atrás, quando o ‘homem’ apenas começava a engatinhar sobre a terra, as panteras não eram negras, a princípio todas eram pardas, nem eram solitárias como agora, viviam e caçavam em bandos a luz do dia, como os leões, que elas na verdade em tudo imitavam.

Até no método da caça elas se espelhavam, mas não sabendo planejar direito a tocaia, parte do grupo espantava a caça que sempre corria para lado oposto do grupo tocaiado, o que gerava sempre grandes discussões sobre de quem era a culpa pelo insucesso, das que espantavam ou das que estavam tocaiadas, e assim elas passavam a vida reclamando umas das outras, sem entender por que os leões, que usavam o mesmo método, sempre conseguiam grandes caçadas enquanto elas, mal conseguiam o suficiente para sobreviver.

Bem na verdade, dizem os sábios antigos, os leões também passavam muitos dias sem conseguir caçar um único animal, muitas vezes tendo que comer carniça para sobreviver, na época de seca quando os rebanhos migravam, a miséria saltava a vista dos corpos dos leões mais jovens, mas as panteras viravam a cara para isso, dando atenção aos leões poderosos que mantinham a forma por comer as melhores partes primeiro, deixando inclusive parte do grupo morrer à mingua.

Quando a seca passava e as caças voltavam as panteras se esforçavam para retirar da mente aquela visão funesta dos leões famélicos. Essa era a melhor época para todos os predadores e o único momento em que as panteras ‘esqueciam’ os leões. Havia fartura para todos, mas que durava pouco tempo pois logo se estabelecia o equilíbrio e caça voltava a ser difícil, com isso as panteras voltavam a admirar os leões, principalmente os grandes machos, com suas jubas enormes, que nesse período eram mais escuras e espessas. As leoas, verdadeiras caçadoras, eram quem mais sentiam o fim da fartura, gerando desavenças entre elas, mas que logo se resolviam sem grandes desdobramentos.

Entre as panteras, suas vizinhas, ao contrário, havia grandes desavenças, com sérios derramamentos de sangue pois, por tanto ajustarem seu modo de vida ao de seus vizinhos “poderosos”, as panteras perderam seu senso de medida e faziam de qualquer bobagem um caso de vida ou morte. Competiam entre si para ver quem se parecia mais com os leões e quando saiam para caçar, acreditando que os leões as observavam – coisa que raramente acontecia diga-se de passagem – ficavam tremulas e perdiam a naturalidade o que tornava a caça uma tortura. Elaboravam táticas minuciosas de caça para impressionar seus vizinhos, que passavam a maior parte do dia roncando. Querendo ser como eles, tentavam caçar animais que só os leões conseguiam caçar, as panteras eram impotentes contra certos animais, mas só se lembravam disso quando estavam em plena luta, muitas vezes quando já estavam feridas de morte.

Mas, naquela época, nem tudo era tristeza na vida das panteras, as vezes elas conseguiam caçar um antílope doente, ou uma zebra já idosa e se fartar em grupo a sombra de uma árvore. De barriga cheia o grupo reencontrava na luz do crepúsculo o vislumbre de uma antiga harmonia e de uma segurança cuja memória estava guardada no fundo de suas almas e que soava como ar de independência ancestral depositada no mais fundo da espécie. Ao vislumbre dessa memória distante, os olhos amarelos das panteras brilhavam de maneira intensa e perturbadora, o único traço delas que os leões sinceramente invejavam.

Mas, dizem os sábios, nem todas as panteras se prostravam aos pés dos leões…

Houve uma que ficou órfã muito cedo, antes que sua mãe pudesse lhe transmitir a desmedida veneração que as panteras sentiam por seus vizinhos. Essa, quando filhote, aprendeu a admirar os guepardos, como raramente se viam guepardos naquela região, a órfã guardava deles apenas uma vaga recordação, mas suficiente o bastante para fazer com que, perante a velocidade dos guepardos, os leões parecessem lerdos e sem graça.

Naquele tempo, mãe e filha viviam em outra horda, da qual a mãe se separara ao seguir um rastro de zebra, e por estar com um filhote ao seu lado não conseguiu retornar a tempo de se juntar ao bando. Mãe e filha vagaram pela planície, subindo nas árvores, quando necessário, para se esconder de leões que, se famintos, não hesitariam em caça-las. Quando encontrava algum lugar com água a mãe escondia seu filhote e ficava em tocaia horas a fio, aguentando as moscas sem se mover para não denunciar a sua presença para possíveis caças que poderiam aparecer em busca de água.

Haviam dois guepardos que caçavam nas proximidades onde mãe e filha se encontravam, eles graças a tremenda velocidade podiam se dar ao luxo de caçar as gazelas. Se alternavam na caças em uma disputa silenciosa por supremacia. Seu senso de caçador solitário imprimia uma vantagem, eles sabiam escolher a presa no rebanho e quando fixavam seu olhar nela não desviavam sua atenção por nada.

As panteras haviam sido doutrinadas a caçar em grupos e a caça em grupo traz desvantagens, o barulho feito pelo grupo de caçador faz com que as presas dispersem em todas as direções, cabendo ao caçador que está na posição mais favorável abater o animal mais próximo. A mãe pantera hesitava muito perdendo instantes preciosos, o que não ocorria com os guepardos, livres de hesitação quase sempre abatiam as presas escolhidas.

Enquanto estiveram perdidas mãe e filha viviam dos restos das caças do guepardos, não fosse por eles as panteras teriam morrido de fome… E observando as corridas incríveis e os movimentos precisos, quase cruéis, do guepardo a pantera filha conheceu um modo de caçar que não era nem de sua mãe nem dos leões.

Por isso ela passou a ter grande admiração pelos guepardos, dos leões tivera que se esconder em árvores, ela não os reverenciavam como as outras panteras. Notou no movimento deles um desperdício de energia, que seu espirito educado na perfeita adequação de cada gesto para uma finalidade concreta, repudiava com aversão.

A mãe lhe ensinara a ser disciplinada e cuidadosa ao máximo e sua mãe só morrera porque as outras panteras não souberam esperar o devido sinal de ataque a uma manada de búfalos. Assim desde pequena se tornou gritante para ela a desordem feita nas caçadas em grupo das panteras.

No tempo que ficaram separadas de seu grupo a filha percebeu que o pêlo de sua mãe que era pardo-avermelhado escureceu e demorou muito tempo para voltar a cor original. Mãe e filha retornaram ao local da antiga horda, mas lá encontraram outra horda de panteras ainda maior que a anterior. Embora elas tenham sido aceitas pela nova horda sempre ocuparam uma posição mais a margem, seu cheiro era diferente para aquele grupo e este nunca esqueceu que elas vieram de fora.

Muitas vezes na hora do descanso e da melancolia a filha surpreendia a mãe olhando sempre na direção sul e embora não soubesse o motivo deitava do lado dela e imitava o gesto como que adivinhando em sua postura que estava à espera de algo. Quando a mãe morreu a filha herdou essa postura, deitava e fixava seu olhar na direção sul e era difícil saber se esperava a volta da mãe ou do algo que a mãe ensinara a esperar.

Como ela só devia explicações de seus atos a mãe na nova horda ela sempre gozou de mais liberdade que outras panteras jovens. Ainda muito nova, enquanto as outras panteras ficavam brincando, ela saía com grupo de caça provando desde cedo o gosto do sangue e da perseguição. Na brincadeira com outras panteras ela se mostrava tímida, pois sabia que a simulação estava um passo do sangue verdadeiro. Suportava a brincadeiras das outras panteras, mas era a primeira a se retirar quando as dentadas passavam do limite entre a brincadeira e a luta. Porém ninguém se atrevia a chama-la de covarde. Todas sabiam da desenvoltura com que ela explorava territórios onde nenhuma outra pantera se arriscava e ela também tinha um gosto por subir em árvores que era desconhecido para as outras panteras.

Este hábito não era bem visto pela horda, pois as árvores não favoreciam a união da horda e apesar das constantes discussões, as panteras eram muito ciosas na coesão do grupo. A ideia de uma vida solitária como faziam alguns leões lhes causava pavor – embora esse fosse o desejo secreto no íntimo de cada uma delas- assim subir nas árvores representava o desejo de silenciar, se isolar e sonhar sabe-se lá com o que…

Quando uma pantera jovem subia na árvore por curiosidade ou rebeldia a horda começava um grunhido que aumentava de intensidade até que ela descesse, mas isso não ocorria com a pantera filha, pois seu jeito de se acomodar entre as ramagens revela um domínio inato das alturas. Se mãe aceitava tal comportamento quando era viva não seriam elas que a repreenderiam. E elas até suportavam o riso dela quando elas se organizavam para fazer caçadas em grupo.

Às vezes, em plena tocaia, justo na hora em que iam saltar do esconderijo ouviam o cristalino estardalhaço de uma gargalhada. Se era zombaria ou insanidade a horda não sabia. Mas tal comportamento irritou tanto que as jovens foram proibidas de subirem em árvores.

Muitas vezes a horda desejava que ela voltasse de onde tinha vindo, sem desconfiar que mãe e filha vieram justamente de onde estavam, pois a mãe não revelou esse segredo, nem mesmo para a filha. De qualquer modo, por ser tão segura de si, a horda sempre reservou o papel de guia das caçadas a órfã, que após a morte da mãe não deixou de subir em árvores e de rir. Embora a horda ficasse irritada com aquele comportamento, no fim ele quebrava o clima sombrio e era tão raro ouvir risadas na horda.

A excessiva ousadia da órfã que inquietava as adultas e afastava as jovens tornou-a tão soturna que quando ela se deitava fitando o sul ninguém se atrevia a importuna-la. Atraída por qualquer ruído ou movimento vindo do sul a órfã dormia cada vez menos, até virar uma espécie de sentinela noturna. Apesar da horda olhar com receio, admiravam a audácia e o sangue frio da órfã nas caçadas, mas não expunham essa admiração, pois seu modelo eram os leões.

Ela não era a única a permanecer acordada, havia uma pantera chamada de colérica que não pregava o olho se outra pantera estivesse acordada. Ela era a primeira a fazer grunhido se alguma jovem tentasse subir em uma árvore. Quando era a órfã quem subia era muito doloroso para a colérica não poder protestar que ela abandonava a roda do panterio e deitava virando a cara.

Seu maior orgulho era ter resistido a tentação de tentar subir em árvore, mesmo quando era jovem seu desejo era ver tudo sempre em ordem, a mais leve quebra na rotina ou nos costumes consolidados provocava nela uma profunda inquietação. Isso a tornava insuportavelmente inquisitiva, reparando em tudo e querendo saber de tudo, sempre pressentindo algum perigo ou ameaça ou catástrofe. Achava que só ela era capaz de zelar pela paz da tribo, e por isso, durante a noite, devia ser ela a última a fechar os olhos. Sempre arrumava uma desculpa para dar uma volta para conferir se estava tudo no lugar.

Não era amiga de ninguém do bando, mas se aproximou de uma pantera chama ‘Lúgubre’, com quem compartilhava o prazer de enxergar no escuro e a aversão de subir em árvores, que na Lúgubre era por um trauma de ter caído de uma na infância.

Apesar de ser presunçosa a colérica se acostumou e só para ela desabafava inúmeras queixas que sempre eram recebidas com um comentário: “Que horror”. Nem mesmo os Leões estavam a salvo das críticas dessa dupla, obviamente nenhuma das duas gostava da órfã, assim como nunca gostaram da mãe dela. A colérica foi a única a perceber que o vínculo da mãe com aquelas terras era mais antigo que a chegada delas ao grupo e foi a única a ficar intrigada com hábito de mãe e filha ficar fitando o sul todas as tardes.

Em suas rondas noturnas, depois de certo tempo, a órfã chegou a um riacho que marcava a fronteira entre o território das panteras e o território dos leões. Caminhando na margem ela parecia indecisa em cruzar o limite que sua mãe respeitara rigorosamente. Invadir o território dos leões representava morte certa.

Passeava junto ao riacho, tentando cruzá-lo para perder-se na outra ribeira, onde a escuridão parecia mais densa e impenetrável. Mas os olhos da colérica lhe lembravam que se cruzasse seria expulsa da horda. Assim a órfã retornava, observada pela colérica, que não tirava os olhos dela até vê-la dormindo. Passava pela órfã dormindo e murmurava “se você atravessar não voltará nunca mais”. Falava sem mexer os lábios de tal forma que a mensagem penetrava no sono. Ao chegar ao riacho essas palavras cruzavam sua mente e ela ficava confusa se eram palavras alheias ou do próprio riacho.

E em uma bela noite de lua cheia, impelida pelo movimento interno de sua alma entrou no riacho e avançou a uma pedra que estava no meio do riacho. Nesse momento não pode conter a vontade de dar um salto até a outra margem. A brisa cessou de repente, bem como o canto dos grilos e o murmuro do riacho. Virou-se e não viu os olhos da colérica. Não viu nem mesmo as águas do riacho correndo, como se aquele salto a tivesse lançado a centenas de metros.

Não mais que de repente, ela sentiu no ar um cheiro conhecido… um aroma familiar e antigo que a fez agachar no capim como quando era um filhote que a mãe escondia dos leões. Alguma coisa se mexeu e ela viu a sua esquerda uns olhos que a fitavam. Sentiu um frio na espinha e começou a grunhir disposta a lutar. O outro animal imóvel na escuridão, não se alterou em nada, como se ativesse absoluta confiança em sua força. Por um instante ela pensou ser um leão disposto a castiga-la pela ousadia.

Mas aqueles olhos não eram de um leão…

Novamente sentiu o cheiro de seu corpo, era o cheiro de sua mãe, tremendo incrédula, avançou alguns passos, o animal baixou a cabeça, cheirou seu peito e roçou-lhe o focinho. Outros olhos brilharam na escuridão e logo ela se viu rodeada por uma horda de panteras escuras, todas com o mesmo cheiro adocicado de sua mãe. Que era seu próprio cheiro.

Na escuridão dezenas de focinhos roçaram suas patas e seu peito, com movimentos delicados e de repente começaram a correr em fila indiana, afastando-se do riacho. A órfã não hesitou em segui-las, confortada pela ordem e silêncio da coluna.

Corriam pelo território dos leões onde o menor ruído poderia ser fatal e quando ela não pode mais acompanhar o bando parou e esperou alguns minutos antes de retomar a corrida. Viajaram a noite inteira, parando quando ela parava e retomando quando ela recuperava o fôlego. Atravessaram o território dos leões, cruzaram morros e matas, nunca ela havia corrido tanto e só não se perdeu do bando graças ao cheiro antigo e revigorante que desfazia seu cansaço.

Quando o dia raiou o grupo pareceu perder sua coesão noturna e se desfez com as panteras separando-se, cada uma seguindo uma direção diferente. A sua frente restou apenas uma pantera e por um tempo correram juntas, mas quando ela tornou a perder o terreno a outra se esqueceu de espera-la e logo desapareceu. Quando viu que se perdeu estacou sem dar nem mais um passo sequer, estava exausta, procurou as pegadas da outra mas viu que só ela tocara o chão. Um leve arrepio percorreu sua espinha… correu a noite inteira atrás de um bando que não deixava rastros.

Até seguir esse bando ela não tinha consciência do próprio cheiro, percebeu que até então tinha vivido numa horda que não era a dela. Toda vez que estivera a ponto de desfalecer esse cheiro lhe infundia uma dose extra de energia. A mãe lhe ensinara a esperar e depois de ter corrido tanto ela percebera que não tinha mais volta, não pela distância percorrida, mas porque ela estava irreconhecível, ficara negra do focinho à cauda. Embora tivesse corrido atrás de um bando, sentiu que tinha corrido estranhamente só, acompanhada por um cheiro, mais do que por uma horda.

[Continua] – Em breve

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Comentários (5)

  1. Responder
    richard says:

    Que demais… Ansioso pela continuação…

  2. Responder
    Eliana Telli says:

    Estou pasma, ” não sei como cheguei até este conto”, mas sei que é pra mim rs…Tenho Pantera Negra como totem e há dois dias atrás fiz uma jornada xamânica onde ela me acompanhou, me levou a uma caverna e quando olhei para trás ela me disse: Não tem mais volta agora só depende de você (…) Gratidão por compartilhar, me trouxe clareza aos meus questionamentos. Por isso digo sempre que amo esse universo xamânico! Ahow

  3. Responder
    Ana Carolina says:

    Me identifico com esse arsuetipo da Pantera.Tenho Familia e os amo muito Esposo e filhos !!! Significa que tenho q ficar sem eles !???

    • Responder
      Willian Tello says:

      De forma alguma, precisa-se de maturidade para entender os significados sutis.

  4. Responder
    Josué Ramalho says:

    Dificilmente leio um texto tão grande na internet, mas esse eu queria devorar, pq com tudo nele eu me espelhava..

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