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O Simbolo da Serpente

 

A serpente é um animal que está presente em todo o globo e fascina a humanidade há milênios, estando presente em pelo menos um punhado de símbolos importantes em cada religião. Assim, não me proponho a destrinchar a simbologia da serpente e muito menos alimentar crenças negativas a este animal que é pura medicina, mas procurarei desenvolver o aprendizado que venho recebendo deste animal sob a luz da ayahuasca.

Me permita começar a reflexão sobre este poderoso animal com uma alegoria budista sobre a vida humana: Era uma vez, um homem que remava um barco rio abaixo. Alguém que estava na margem o advertiu, dizendo: “Pare de remar tão vigorosamente nesta suave corrente; logo adiante há corredeiras e um perigoso redemoinho, há crocodilos e demônios à espreita nas rochosas grutas. Você perecerá, se continuar”.

                Esta é uma alegoria sobre a luxúria e este rio é a nossa mente. Estamos em um barco, fluindo e em geral sendo levados suavemente por este constante fluxo de pensamentos, com eventuais redemoinhos de prazer, corredeiras turbulentas e outros perigos, e ainda assim este homem se põe em grande risco ao remar a favor desta corrente traiçoeira, pautado pela sede de sensações e pela ilusão de que o fluxo suave perdurará.

                Imagine ainda que este homem é tão insano que não reconhece que está sob um rio que flui suavemente, muito menos o seu trágico destino. Está no escuro, apenas com esta atitude desenfreada de remar, de correr atrás, de buscar, de satisfazer os seus desejos infantis. O homem encontra esta serpente pequena de cores vibrantes, inofensiva e sedutora. É incapaz de reconhecer o perigo e logo dança com a serpente neste vai e vem tão natural a ela, tão inevitável. A serpente vai crescendo e o homem, seduzido e absorto, não percebe. Ela se move, dança e cresce até ser capaz de devorá-lo e certamente o fará.

                Assim como a natureza do rio é fluir, a natureza da serpente é a predação e o caminhar pela dualidade, do vai e vem, de um extremo para outro; nada há de errado com isso senão a tolice do homem que preferiu não enxergar a verdadeira da natureza dos seus encontros.

                Diz-se que depois que Perseu corta a cabeça da Medusa, em seu corpo havia uma veia que jorrava um veneno mortal e uma veia que jorrava o elixir para a vida eterna. A serpente representa a expressão da dualidade sob o íntimo de nosso ser, do masculino e feminino, da sexualidade, da força criadora e destruidora e cabe a nós, como cabia à Medusa, escolher qual secreção invocar.

 

 

Caduceu, símbolo do comércio. Também representa a união do feminino e masculino no entorno da coluna vertebral, ou da árvore da vida, em busca da ascensão.

 

Este íntimo tão inacessível, que está em constante busca de prazer e em constante guerra contra a dor, é a poderosa serpente. Assim, o poder da serpente só é concedido ao ser humano se este for capaz de dominá-la, como fizeram os grandes heróis e deuses de diversas tradições. Moisés que comanda a serpente-cajado que subjulga os sacerdotes do faraó; a Deusa da sabedoria Atena que frequentemente aparece sob a cabeça de uma serpente; Ananta-Sesha que é a serpente de mil cabeças que Vishnu usa como repouso; Shiva que é representada com uma naja peçonhenta em seu pescoço, representando seu domínio sobre a morte; Krishna que derrota a terrível serpente Kalia; Quetzalcóatl, deus-criador asteca, cujo nome significa “serpente emplumada”.

Eis que, durante este ritual com a ayahuasca, senti a presença rastejante e sorrateira por um certo período, até que o animal se apresentou. Vindo por trás e dando a volta, com este corpo comprido, a serpente me envolvia com sua presença divina e parou em minha frente, na altura do umbigo, em minhas mãos, esperando alguma espécie de resposta. A certeza que vinha em meu auxílio era tamanha, que a resposta foi: “Você só pode ser uma benção!”. Após este contato, a serpente continuou nos arredores e o resto de ritual se configurou em uma experiência das mais elevadas e conflituosas que já passei. Foi um misto de sentir a “luz da iluminação” com a certeza de que a experiência era cooptada pelo ego. Sentei “como sentaram todos os Budas” e o mundo era pura luz dourada irradiando sobre

minha cabeça, até perceber que a luz dourada era nada mais que o interior de um castelo dourado que, uma vez visto, desmoronou. Fiquei um bom tempo neste vai e vem maravilhoso entre sentir a unicidade e me sentir especial que, ao mesmo tempo, me cansava porque sabia que em certo nível estava sendo enganado pela mente; na verdade me sentia profundamente traído e até impressionado com a “falta de escrúpulos” de Maya em utilizar o tema da iluminação contra mim. E fui cansando e cansando até a experiência diluir e passar.

                Neste mesmo ritual e em todos os outros subsequentes, a serpente se manifestou de maneira mais sutil: surgindo da fogueira, comendo tumores internos com o seu poderoso poder digestivo e transmutador, ou ilustrando algum pensamento específico. Pautado pela apresentação intensa que tivemos, sempre que a via também me observava honrado neste prazer orgulhoso em saber que estava sendo “protegido” por este espírito tão poderoso. Logo eu!

Foi durante as minhas pesquisas sobre a serpente que eu reavaliei a minha postura perante ela. De repente, cogitei a hipótese: “Será que sou seduzido e nisso perco a verdadeira oportunidade de aprender a mensagem dela?”. O tema da sedução é muuuito mais presente em minha vida do que parecia. Ora, se a sedução não é a grande dificuldade da meditação, por exemplo? Se sempre que sento em meditação sou bombardeado por pensamentos do tipo:

  • *coceirinha insignificante* “Não aguento este tormento; por que não perder o foco da mente por alguns segundos e dar essa coçadinha?”;
  • *após 15 minutos de meditação* “Nossa, já deve ter passado quase uma hora, já está bom por hoje” *levanta, bebe água e percebe: não há mais nada pra fazer*;
  • *tempo livre em casa* “Vou meditar ou assaltar a geladeira?”;

E no dia-a-dia: o doce da cantina, a oportunidade de fazer uma piada mediana, o anseio por oferecer algum conselho ou conhecimento inconveniente, a inércia da procrastinação etc. Seduzidos e absortos pelos prazeres momentâneos e fugazes, perdemos a oportunidade de agir com sabedoria e eficiência.

A sedução acontece quando compramos a ideia de que precisamos disto ou aquilo, conscientes ou mais frequentemente inconscientes. E o mundo está aí para nos tentarmos, assim como a serpente venenosa que se move para lá e para cá indefinidamente. Os sentidos da serpente se baseiam no olfato pela língua que capta os cheiros-sabores que sua presa emana; nas vibrações que vem da terra, “ouvida” por cada vértebra, que capta o menor movimento e direção da presa; possuem fossetas que captam variações mínimas de temperatura (da ordem de 0,003 °C) e, portanto “veem” a sua vibração energética. Por sorte da presa, a visão da serpente não é bem desenvolvida e enxergam basicamente elementos em movimento.

Portanto, quando a serpente aparecer, o melhor a ser feito é ficar parado. Observe o que você emite: se é tenso ou relaxado, se é azedo ou doce, se é quente ou indiferente. Mas o mais importante é ficar imóvel. Deixe o fluxo da serpente se manifestar, seu corpo passar pelo seu pescoço, pelos membros e pelas entranhas, sinta o roçar da pele áspera, o eterno vai e vem da manifestação, impermanente e inevitável, e deixe passar. Se conseguir ficar imóvel no encontro com a serpente, ela não te percebe e segue seu caminho, inevitavelmente.

 

 

Mamba negra: é a serpente mais rápida do mundo e a mais venenosa da África. Corre até 19km/h e dá um bote de 2m em movimento. Também conhecida como Sombra da Morte.

 

Durante este encontro, reconheça que a serpente não te satisfaz; é dukkha, imprevisível, sofrimento, insatisfação. Dukkha é uma palavra em páli que vem de “Duk” que significa “eixo”. Quando Buda diz que “A vida é dukkha”, ele quer dizer que a vida é como uma roda fora do eixo que, descentralizada, vai para lá e para cá enquanto gira, indefinidamente, em movimento cíclico, que se repete de uma ponta à outra, em um eterno vai e vem. Não caia na dança do movimento da serpente que por si é exatamente este eterno vai e vem de experiências maravilhosas ou terríveis e necessariamente sem substância, passageiras e insatisfatórias.

Por fim, e em nome da grande serpente branca da transmutação, a visita da serpente é sempre um lembrete de que a pele velha deve dar lugar à pele nova. Toda serpente só troca de pele por que cresce e assim, qualquer pessoa que passa por um processo de amadurecimento, de evolução, deve estar disposta a abrir mão do personagem antigo para dar espaço ao personagem novo, em honra ao processo de morte que traz a vida nova.

*Texto escrito por Leonardo Garcia

Comentários (10)

  1. Responder
    Adriana says:

    Texto maravilhoso. Conteúdo muito relevante, cadência na leitura fluída! Obrigada!

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      BRÁULIO CORREA says:

      Muito bom essa experiência, que aqui relatastes, essa experiência é o que acontece com a maioria e onde estes se perdem pelo encantos do ego se tornando pessoas soberbas.
      E no momento em que todos compreenderem que fazem parte do mesmo corpo divinal e que não somos separados do criador; teremos mais paz pelo nosso semelhante e respeitando- os e compartilhando das mesmas experiências , sem inveja-las ou Deusifica-los.

    • Responder
      Alinne says:

      Olá..esta noite na consagração da madrecita me tornei a própria serpente, meu corpo contorcia como uma cobra e percebi o despertar da kundalini dentro de mim. Eu não fiquei quieta. Eu permiti que ela se manifestasse em mim e foi o momento mais incrível que vivi. Ser a serpente da cura, da libido, da força criadora da vida. Ela me trouxe a energia que eu acreditava estar adormecida em mim.

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        Luzia says:

        eu sinto isso. Consagrei 5 vezes e nas 4 últimas senti assim. Ouço, mentalmente, passando e curando. E, ao cruzar com certas pessoas, ela faz com as minhas mãos como se fosse uma naja. Na última consagração, vi um portal, escuro, mas com luz ao final. Emito sons de serpente, a minha língua não para. Me assustei da primeira vez, mas agora permito, por pensar na cura e peço luz divina a todos os presentes. É mais forte que eu, como se ela me falasse mentalmente, mas tivesse controle sobre os meus movimentos. Fico sem jeito de contar aos outros, mas agora, com esse post, tive coragem. Eu vi serpentes saindo do fogo na hora da limpeza das pessoas, como se obedecessem as instruções da que movimentava o meu corpo. Ela dizia: Passando e curando. é tudo muito novo para mim, fico exausta, ao final, mas numa paz absurda.

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      Lisandra says:

      Amei
      Que lindo e profundo Leonardo
      Parabéns
      Descobri que meu animal de poder é a Serpente Verde e pesquisei e apareceu teu belo texto
      Gratidão =)
      Muita Luz, Paz e Amor no coração
      Abraços de Luz

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    fernanda says:

    muito legal

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      fernanda says:

      gratidão !

  3. Responder
    Thaike says:

    Excelente reflexão, madura postura.

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    Rhozy says:

    Buscando compreender os meus processos da ayahuasca, a serpente sempre fortemente presente, de várias maneiras, encontrei seu blog, fez muito sentido para mim. Gratidão!

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    Alexandre says:

    Mto bom esse texto…deu um norte p minha primeira experiência c a ayahuasca.
    Senti e vi a presença dela e isso me ajudará em minhas questões e numa próxima consagração esperarei ela vir ou n e terei atitudes melhores perante ela.

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