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Na tradição o Daime tanto a bebida quanto o símbolo da cruz receberam um novo batismo, renovando as energias do passado. Dentro do movimento iniciado pelo Mestre Irineu, nasceu um símbolo de grande poder, vindo de idades distantes… uma cruz de dois braços abarca o Trabalho, era o Santo Cruzeiro, contendo em sua essência um mistério oculto. Seu nome mais conhecido é Cruz de Caravaca, lugar onde teria aparecido na Espanha, em uma manifestação de “anjos celestiais” à época do domínio muçulmano.

Diz a lenda, que em 1232, um milagre se manifestou pelas mãos de dois anjos na cidade de Caravaca. Nesta época a Espanha estava sob domínio do Império Islâmico, que durou cerca de 700 anos. A reconquista da Península Ibérica, ocorreu com ascensão das monarquia modernas. O domínio islâmico deixou marcas profundas na cultura ocidental, inclusive com a formação de uma sociedade multicultural na Ibéria, reunindo sábios e estudiosos de longas tradições e diferentes lugares, dando origem a grandes escolas do saber.

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Elos culturais de diferentes mundos germinaram agregando saberes e conhecimento antes dispersos, símbolos e ritos também renasciam em manifestações ocultistas de alquimistas e magos: um mundo se encontrava em uma só fronteira. Todos os 700 anos estiveram constantemente sob prova de fogo e guerra, os povos ibéricos almejavam a reconquista das terras, enquanto o Vaticano vislumbrava a expulsão dos ‘infiéis’, de tal forma, na mesma época da crônica sobre o aparecimento da cruz em Caravaca.

A cruz com dois braços transversais surgiu como relíquia sagrada, carregando ainda outro elemento miraculoso, segundo a lenda, além da insígnia entregue por anjos ser coberta de ouro e pedras preciosas, sua madeira continha lenho da ‘Cruz de Jesus Cristo’. No âmbito da aparição o mito atribuiu o fenômeno a fé do monge Gines Perez Chirinos, feito prisioneiro do Sultão Muhammad Ibn Yaqub, senhor das terras por onde se encontrava a possessão de Caravaca.

Diz a lenda que o soberano mouro obrigou o monge a celebrar uma missa católica com tudo que existia na tradição, este seria seu desejo de conhecer a cultura do povo dominado e saber qual era o oficio daquele prisioneiro. Por assim ser, Gines organizou a cerimonia dentro de um salão no Castelo.

Com pouco tempo decorrido, desde a ordem do sultão, na hora da missa o monge acabou por ver que faltava o mais importante: a Cruz! A sentença seria implacável, quando foi que dois anjos apareceram pela janela, portanto a cruz de dois braços. Por esse fenômeno miraculoso, o Príncipe e os guerreiros de seu exercito se converteram ao cristianismo romano, libertando prisioneiros e abandonando a devoção ao Alcorão, tornando-se devoto da ‘Cruz de Caravaca’ desde então. A tradição teria se estendido por todos os reinos batizados pela coroa de Roma, levando a crença movedora às Cruzadas, pela reconquista da Terra Santa.

É evidente que essa lenda só encontrou expressão pelas vozes dos vigários de Roma, sem nunca ser relatada por qualquer mensageiro do Islã. A força da relíquia atravessou fronteiras dos mundos conhecidos, viajando ao leste europeu, chegando a Terra Santa, com a mensagem da vitória dos cristãos, a reconquista de Jerusalém e do Templo de Salomão: o “retorno do salvador” era a promessa do perdão, seus braços estendidos representavam uma forte ressurreição.

Vários nomes foram atribuídos ao símbolo e provavelmente ele seja mais antigo do que é possível conceber atualmente. Sabe-se, que desde o mundo antigo, essa cruz era consagrada nos cultos da Igreja Oriental, com símbolos e ritos próprios de uma magia ancestral. Era o símbolo dos Patriarcas da Igreja Primitiva, na época em que Roma ainda não havia criado seu sistema de poder.

Esta “era” definida por ‘cristianismo primitivo’ fase inicial de uma nova experiência com o sagrado, sem centralidade de um sistema politico, os bispos eram autoridades perante seu próprio povo, mas todos eram reconhecidos pelo símbolo da ‘Cruz dos Patriarcas” a mesma com dois braços transversais em seu mastro. Até mesmo em Roma o sinal ganhou feição, pela imagem de São Marcelo, bispo de Roma, quando ainda não havia um forte poder de uma igreja.

Pode ser que pelos ventos do Saara, estas tradições do passado tenham chegado aos reinos cristãos da Ibéria dominada pelo Islã, muitos eram os magos e alquimistas que viajam em busca de novos saberes.

Buscando os elos de representação do mito no culto pelas Ámericas, sabemos que ganhou força na época da invasão. No Brasil o portador de uma imagem da relíquia de Caravaca foi Martim Afonso de Sousa, já em 1532, acompanhado pelos Jesuítas. O símbolo expandiu o mito do milagre entre os próprios povos gentios escravizados, era o estandarte das Missões, perpetrando o discurso de conversão dos ‘infiéis’. Desta forma, a mesma insígnia por essas terras é nomeada de “Cruz Missionária”, encontrando sua exultação maior na ‘Fortaleza de São Miguel das Missões’. O símbolo sagrado começou a ser chamado por ‘Cruz de São Miguel’.

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Quando os portugueses chegaram um mito corria a região dos guaranis. Os índios acreditavam que num tempo antigo, viveu um líder de grandes poderes, anunciando que após a sua partida, outros viriam trazendo a cruz, este seria o sinal dos mensageiros de Deus – Este relato, claro, pertence as crônicas católicas. Contudo, entre as lendas existentes, conta-se que o nome atribuído ao mensageiro do passado, ora era “Pai Zume” na região sul do Brasil, ora era “Pai Tumé” na região do Paraguai, Peru e Bolívia. Os Jesuítas teriam ficado impressionados com os relatos indígenas, em especial o missionário Antonio Ruiz de Montoya, que percorreu toda a região com a Cruz de São Miguel nas mãos, acreditando que o famoso ‘Pai’ do passado, seria o próprio apostolo Tomé. Em uma de suas preleções, datada de 1639, Montoya registra a profecia, atribuindo seu discurso a Pay Tumé: “A doutrina que eu agora vos prego, perdê-la-ei com o tempo. Mas, quando depois de muitos tempos, vierem uns sacerdotes sucessores meus, que trouxerem cruzes como eu trago, ouvirão os vossos descendentes essa doutrina”.

Desde então a história de Pai Zumé continuou a circular, dando maior simbologia à cruz de tão antiga confissão, mas agora repaginada com a promessa de retorno de descendentes daquele sagrado mensageiro, com a doutrina de salvação expressa num símbolo de redenção.

O que nos diz respeito são os caminhos percorridos pela cruz até chegar às mãos de Mestre Irineu. No Daime passou a ter um grande poder no rito, uma vez que todo o Trabalho ocorre ao seu redor, estando acompanhado por velas, rosas e outras flores, à sua frente o Mestre Juramidam a tudo comandando. O símbolo oculto de seu poder atravessa as comunidades daimistas conferindo a aura encantada de uma missão sagrada, a missão que também esta oculta atrás do segredo de JURAMIDAM.

A simbologia da Cruz de Caravaca permaneceu ocupando grande posto nas esferas ocultistas de magia na região das fronteiras dos seringais. Os livros de magia circulavam pelas mãos dos iniciados da região, entre eles, “A Santa Cruz de Caravaca” e “O livro de São Cipriano”, fontes de inspiração para tantos aprendizes das artes magicas e conjurações poderosas nessas fronteiras dos seringais.

Esse pode ser um indicio da influência de artes magicas que circulavam nas fronteiras Amazônicas e que pode ter influenciado na formação cultural do daime. Talvez Mestre Irineu aprendera mais do que beber ayahuasca com os ‘maestros’, e assim, trouxe antigos saberes de símbolos e ritos ocultos de grande representação no imaginário popular. Ao passo que a Cruz de Caravaca, manifesta-se através de símbolos próprios do Daime, já traz em si a experiência da multiplicidade cultural da ayahuasca, o Santo Cruzeiro guarda o segredo de Juramidam e também guarda a memória dos antigos curadores e aprendizes das artes mágicas.

A Cruz era para eles um amuleto sagrado revestido de grandes poderes, os milagres são reverenciados ao mesmo tempo que se evoca os poderes mágicos para uma enorme gama de necessidades e aflições, carregando o sentido maior de uma conjuração, livrando do mal cada fiel em toda situação. Um amuleto cumpre a função de magia experimental, quando os adeptos devotam a fé que a insígnia em si possui poderes, desde que consagrada com um rito encantando e uma oração sagrada. Assim seus poderes se manifestam no mundo fenomênico alterando uma realidade imprecisa, manifestando assim, os valores de uma experiência suprassensível.

Outras fronteiras a Cruz atravessará no Brasil encontrando nos ritos da umbanda o forte elo com os Pretos velhos, que são anciãos portadores de sabedoria, uma identidade muito próxima aos patriarcas de outrora. O Santo Cruzeiro na Tradição do Daime, está além de uma alegoria, em um Hino de autoria do próprio Mestre Irineu, toda a reverencia a insígnia é destacada com especial devoção:

Dou viva a Deus nas alturas

Dou viva a deus nas alturas

E a virgem Mãe nosso amor

Viva todo Ser Divino

E Jesus Cristo Redentor

Eu peço a Deus nas alturas

Para Vós me iluminar

Botai-me no bom caminho

E livrai-me de todo mal

Eu vivo aqui neste mundo

Enconstado a esse Cruzeiro

Vejo tanta Iluminária  

Do nosso Deus verdadeiro

Esta iluminaria que eu vejo

Alegra o meu coração

Estas flores que recebemos

Para a nossa salvação.


Enfim, qual mistério abarca o Santo Cruzeiro? Qual segredo abraça os dois braços do Cristo do Calvário? Juramidam vivia encostado ao cruzeiro…

Haveria Mestre Irineu aprendido alguns saberes provindos dos livros mágicos?