Brincadeiras e “realidade” por Augusto Salvador

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Estive pensando sobre como foi minha infância e como é a infância das crianças hoje em dia e me deparei com o encantamento de observar, nas memórias, certas brincadeiras infanto-juvenis. Pequeninas e pequeninos, em seus divertimentos, pegam elementos da “vida real” dos adultos e criam uma lógica totalmente particular, para satisfazer as necessidades da brincadeira. E há um grande leque de possibilidades, com mais ou menos regras. Mais organizadas ou mais flexíveis. Desenhos perfeitamente belos ou coloridos sem qualquer respeito às linhas. Jogos cooperativos ou competitivos. Brinquedos mais violentos ou mais divertidos. Multiversos que podem acabar num paraíso de alegria ou em mares de lágrimas. Mas tudo é faz de conta. Afinal, amanhã tem aula…

Lembro-me de minha infância. Meu tio era mestre de obras e nos fundos da casa de meu avô sempre havia muitos materiais para construção. Meu primo e eu sempre construíamos casas de mentira com tijolos, tábuas e latas vazias. Chamávamos de “cabana”. Era curioso, pois ficávamos lá, fingindo ter construído nossas casas e estar com a “vida adulta” a pleno curso. A brincadeira não parava ali… As bicicletas que pedalávamos eram nossas motos e quando chegávamos à casa da mamãe – era tudo perto: casa dos pais, dos avós e dos tios – fazíamos vários registros e relatórios fictícios em cadernos de brochura. Discutíamos assuntos profissionais da mais alta prioridade pelos walkie-talkies. Depois de um tempo, voltávamos pra cabana, comer rosquinhas e tomar leite com chocolate… Depois a vó chamava pra dentro e a coisa ficava séria. Tínhamos que entrar na lógica racional adulta, preocupada com e responsável pela manutenção material “verdadeira” de nossas vidas. Também tinha ocasiões em que chovia enquanto brincávamos e rapidamente apareciam goteiras, senão cascatas, dentro de nossas moradas de mentirinha. Rapidamente aquele pequeno mundo ruía e logo estávamos sob os tetos “reais”.

Há muito que aprender sobre ego e Espírito Santo debruçando-se sobre o exemplo do mundo das brincadeiras e do mundo dos adultos. Quando eu brincava com meu primo, havia elementos mais profundos em jogo. Uma casa e um trabalho de faz de conta talvez expressassem a vontade de suprir nossas próprias necessidades e assim sermos felizes. Entretanto isso não podia ser garantido por nós numa mera diversão. Independente da fantasia, no fim das contas (e no nosso caso, afinal nem todas as crianças deste mundo nascem com as mesmas oportunidades com as quais nascêramos) nossa prosperidade “real” não estava ameaçada. A família, os adultos, na racionalidade da vida cotidiana, garantiam o bem-estar… Mas que bela ilustração do modus operandi do sistema de pensamento chamado ego!
O desejo fantasioso infantil produz realidades caricatas nas quais se projetam atividades que simulam a vida e nas quais se acredita, mesmo que num espaço-tempo delimitado.

Porém a surrealidade das bases dessas crenças chega a um limite. Por mais que se queira brincar de casinha, não tem como uma menina ou um menino morar o resto da vida sob um teto de brinquedo.  Por um motivo qualquer, um pequeno ou pequena pode se chatear e querer se esconder por horas, dias ou toda a eternidade em seu cantinho, julgando proteger-se. Então um adulto vai lá e conversa para desfazer a confusão e resolver o conflito. Afinal de contas, pode haver um conflito entre a defesa inventada num frágil universo infantil e o calor confortável dos braços de uma mãe, pai ou familiar? Qual a possibilidade mais palpável para solucionar qualquer problema da criança? É claro que não estou discutindo técnicas de pedagogia ou psicologia aqui. Não pretendo adentrar esses terrenos. Apenas fica a pergunta: o que é mais efetivo, ainda que num nível imediato, para sair do problema? Fantasia ou “realidade”?

Vamos olhar além. E se a própria “vida real” dos adultos é uma brincadeira? Então tudo aquilo a que atribuímos sentido como sendo nossa “vida real” – nossa história pessoal, amigos, estudos, locais de trabalho, livros lidos, o que fazemos hoje, pessoas que amamos, aquelas que odiamos, como planejamos a aposentadoria e tantas outras coisas – é apenas uma fantasia do ego. Um casebre que verte água para os cômodos sob a primeira chuva. Ou um castelo de areia que desmorona com os sopros de vento na praia.

De fato, criamos uma miríade de factoides: problemas de saúde, dificuldades financeiras, relações atribuladas com amigos e familiares, complexos, qualidades, fraquezas, forças, virtudes, vícios e muito mais… Incontáveis estrelas de infinitas galáxias que compõem o universo do que achamos que somos. Nessas constelações, muito é possível.  Qualidades aparentemente fortalecem. Problemas, por outro lado, tentamos evitar, de todas as formas possíveis. Viramos a cara para outro lado e direcionamos as ações. Muitas atribulações e dores de cabeça depois, lá estamos, defronte ao mesmo problema, talvez com outra roupagem. E então refletimos sobre os erros do passado, em divagações mentais para fora do aqui, longe do agora… Mas isso tudo são epifenômenos. Estão dentro do pacote do ego para a autossuficiência e a felicidade no descolorido mundo de seus esboços.

O Espírito Santo tem um papel aí. Ele está em nossa mente dividida para nos ajudar a compreender que esses fenômenos de superfície são desdobramentos de uma contradição profunda: a decisão, enquanto mente, de nos separarmos. De acreditarmos que somos nossa própria fonte, à parte da verdadeira Perfeição que nos criou e que temos o poder de expandir.

Colocando-nos à disposição do Espírito Santo, podemos iluminar com Sua chama todos os cantos escuros e histórias de terror inventadas pelos devaneios do ego. Encarando os monstros, saberemos que são pinturas de um medo desnecessário. Com Sua ajuda, podemos dissolver pouco a pouco essas imagens ou bloqueios e dar passos, obervando que andamos rumo ao… nada!

Esse grande Guia quer nos ajudar na maravilhosa descoberta de que todas as engrenagens do relógio que inventamos para nos separar de Deus (ou qualquer outro nome que se queira usar aqui) são absolutamente uma contradição entre o que existe e o que não existe. Mas pode mesmo haver contradição, se há apenas uma realidade? Como um familiar amoroso, o Espírito Santo sempre estará disponível para um bom diálogo que vai nos tirar da canoa furada, ou do barraco de mentira. Mas nós temos que chamá-Lo para tomar um chá (risos) e estar dispostos a escutá-Lo.