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O símbolo da Pantera e a busca pela autoidentidade. [Parte 02]

Na época de seca quando todos os herbívoros migram e os leões os seguem, era a única época em que as panteras podiam cruzar o riacho e espiar os domínios dos leões. As panteras sentiam uma inexplicável leveza quando seus vizinhos partiam para o norte em busca de água e de caça.

Mas ainda que penetrassem no território dos leões tremiam de calafrio só de pensar que eles podiam retornar e elas lá ainda estarem, por isso entravam timidamente e só por curiosidade, pelo prazer de pisar na mesma terra dos leões, venerando e cheirando tudo que pertencesse a eles na esperança de inalar a essência dos vizinhos e quem sabe um pouco de sua força.

Na horda haviam aquelas que queriam ir para o norte em busca de água e de caça, mas que eram reprimidas por aquelas que temiam ter que caçar lado a lado com os leões, essas queriam ir em direção as montanhas ao Sul, mas temiam que os leões voltassem às suas terras antes delas conseguirem voltar e assim ficarem presas em terras desconhecidas.. No fim as panteras dividas pelo fascínio dos leões e das montanhas distantes, faziam o de sempre não iam nem ficavam, até o ponto em que a fome apertava e elas começavam a odiar tudo aquilo que viam e não podiam caçar, como leões e pássaros, passando a odiar também as plantas, as pedras e as nuvens conforme a fome aumentava. Na verdade o que cada pantera odiava nessa época eram as demais panteras, culpando-se mutuamente pela escassez de comida e em vez de se dedicar a caçar pequenos roedores e cobras que nunca emigram, teimavam em sair do grupo, complicando ainda mais seus enredados planos de caça.

Conforme as aguadas iam diminuindo e as tocais iam perdendo eficácia devido as horas a fio sem um único animal aparecer o humor das panteras ia piorando a ponta delas abandonarem seus postos prometendo abandonar a horda e ir viver sozinha até que no dia seguinte esses planos evaporarem mais depressa que orvalho e o grupo continuarva mais mau humorado do que antes.

Foi a Colérica que percebeu que os leões não foram para o Norte, mas para Sul em direção as montanhas e o bando sentiu uma atração irresistível por seguir aquele rumo insólito, marchando com entusiasmos, mas ao entardecer se arrepender por ter deixado o acampamento por perceber que as pegadas dos leões se dispersavam, e que não havia nenhuma aguada na região. Tendo que decidir se voltavam o caminho ou tentava melhor sorte em direção as montanhas. Optando em seguir em frente até a pegada dos leões sumirem por completo e elas seguirem o cheiro e perceberem que eram apenas dois leões que seguiram por aquele caminho, um jovem macho e uma fêmea madura que também se separaram a certa distância, onde o bando decidiu seguir os rastros do macho por ele deixar um cheiro mais marcante.

O leão jovem certamente fora banido pelo chefe do bando, costume corriqueiro entre os leões, quando os leões jovens atingiam certo vigor. A leoa madura que o acompanhara era certamente sua mãe, ultimo vinculo com o clã de origem, que o retirou da horda para que sua vida não corre-se perigo. Os leões jovens tinham que abandonar sua horda e caminhar solitários até ter a sorte de encontrar uma horda cujo chefe esteja em declínio para com ele disputar o cetro da chefia. Assim era a vida desses leões ou tomavam o cetro de outrem ou continuavam vivendo sós. Nenhuma horda os aceitavam por aquilo que eram: jovens leões desejosos por pertencer a uma horda, pouco importando como. Quantos leões não aceitariam uma posição inferior apenas para não ter que ficar perambulando de horda em horda em busca de constituir família. Quantos deles não aceitariam um papel subalterno enquanto não se dessem as condições para uma troca pacifica de liderança.

Com o tempo, porém os acertos desse tipo talvez desvirtuassem o caráter dos leões, habituando-os a espera de uma oportunidade longamente cobiçada e tornando-os astutos e dissimulados o que depois de algumas gerações acabaria causando mudanças emocionais e físicas, por exemplo o desenvolvimento de um porte menos sólido acompanhando talvez de um gradual desaparecimento da juba, que sua função intimadora, não se ajustaria a nova natureza conciliadora e precavida da espécie.

Era preciso que a juventude fosse exatamente como era, difícil e muitas vezes desesperada, para que não perdessem seus traços mais valiosos e admirados: arrojo frontal, capacidade de improviso e desprezo por todo e qualquer cálculo.

A expulsão do jovem leão talvez explicasse o insólito movimento dos leões na direção sul e o panterio começava a se perguntar se ter seguido os rastros não fora um grave erro. Caminharam por 3 dias até encontrarem um oásis onde beberam água até não poder mais e ficaram à espreita caso algum herbívoro aparecesse o que não ocorreu e as panteras retomaram a marcha seguindo os rastros do leão. Não demoraram muito para o encontrar morto, estraçalhado e cheio de moscas. Ao seu lado um corpo de um bicho cinzento malhado semelhante a uma pantera com a barriga rasgada obra daquele leão que agora pouco restava pois fora comido pela horda daquele que agora se encontrava morto ao seu lado.

As panteras ficaram espantadas e se perguntando que bicho seria aquele capaz de atacar um leão como se fosse uma zebra ou gnu quando perceberam que tinham ido longe demais. Estava na hora de voltar, aquele leão destroçado era como um claro aviso do limite do mundo, sinal que além daquele lugar começava algo sinistro e caótico, onde nenhum bicho devera se aventurar. Se não estivessem tão famintas teriam voltado e talvez, caso chegassem até o acampamento se vangloriariam de ter chegado até o limite do mundo, onde encontraram um leão destroçado para além do qual se impunham as montanhas que assinalam o fim de tudo.

Mas agora viam que o mundo era muito maior e ia muito mais além do que acreditavam e percebiam acima de tudo que estavam com muita fome. Foi a Lúgubre quem primeiro percebeu que o bicho malhado se tratava de uma hiena. Como só tinham ouvido falar de hiena, um sentimento de decepção surgiu no panterio ao ver o porte mirrado daquela hiena e ao mesmo tempo de surpresa quando perceberam que aquele jovem leão foi morto a dentadas, sobrando apenas a parte de cima, por assim dizer, mais ou menos intacta.

Por precaução, seguiram o caminho por uma parte da mata tão densa que as sombras das árvores dava uma clima e sensação de estarem caminhando de madrugada, mais a frente encontraram um brejo com uma multidão de sapos. Elas estavam tão famintas que a saparia parecia tão apetitosa quanto um rebanho de gnus.

Após uma rápida reunião decidiram organizar uma caçada e por cabo em todos aqueles sapos, assim uma parte do grupo ficou tocaiada de uma lado da margem enquanto a outra parte foi fazer a emboscada com a intenção de espantar os sapos em direção as que estavam em tocaia. Mas a situação física delas era tão lastimável que, quando se jogaram na direção do brejo a marcha era tão triste que os sapos nem se preocuparam e continuaram de barriga para cima nas pedras, ou mergulhando nas águas, sem se incomodar com a presença delas. O grupo tocaiado esperou até não aguentar mais as picadas dos insetos, assim quando uma delas desistiu de esperar viu os sapos aproveitando a vida e as panteras arfando de cansaço do outro lado.

E assim começou a ladainha de reclamações mútuas. O de sempre. Nessas discussões todas se enchiam de uma insuspeitada energia que podiam ficar horas brigando, o que teriam feito desta vez, não fosse um barulho que as forçou a olhar para o mato ali perto. Vira uma coisa escura brotar das árvores e saltar no meio do matagal, estremecendo violentamente a vegetação ouvindo um arfar pesado que se segue a captura de um animal. Foram verificar e viram um animal estranho, um felino como elas, escuro do focinho a cauda mordendo a garganta de uma gazela, respirando com o ronco próprio da fera que ficou por muito tempo segurando o fôlego à espreita. Avançaram mais um pouco e o animal cercado pela horda esticou as pernas como se fosse saltar o que bastou para deter a horda. Perante aquele vigor ninguém ousou ataca-lo, assim o animal pode arrastar a presa para o mato.

Não era só medo, seu negror de tão intenso tornava difícil calcular seu tamanho. A luz fazia hora parecer imenso, hora do tamanho de um chacal. Em certos movimentos sua corpulência e seu perfil se fundiam num só aprumo perturbador. Seu negror parecia conter toda força e astucia que um felino poderia ter para atingir determinado fim. Observaram subir em uma árvore com o bicho pendurado em seus dentes, deixando-o numa forquilha alta, quando, nesse momento, arfando pelo esforço, se virou para olhá-las. Todas pensaram que jamais teriam conseguido tal proeza. “Do jeito em que estamos, nem os sapos conseguimos”, pensou a Lúgubre.

Elas o viram deitar ao lado de sua caça, e reconheceram algo naquela postura, uma sensação estranha as pasmou por um instante. Mas ele permaneceu pouco tempo em repouso. Como se algo o tivesse chamado nas profundezas da mata, se levantou, pulou para um galho mais alto, depois para outro e quando não podiam mais vê-lo continuaram ouvindo seus saltos entre a folhagem.

Anoiteceu e as panteras se reuniram em um ponto entre a mata e o riacho, ainda espantadas com a aparição daquele animal, e organizaram um plano de guarda para caso ele voltasse, se dividiram em 3 grupos que prestariam especial atenção a odores, barulhos e movimentos. O plano era simples, o grupo dos odores se subdividiram em odores minerais, vegetais e animais, as de ruídos em ruídos graves e agudos e as de movimentos em movimentos rápidos e lentos. Quando alguma pantera avistasse algo estranho avisaria seu chefe de grupo. O chefe do grupo então acionaria outro grupo. A ideia era que caso uma pantera visse algo se mexendo no ar rapidamente, chamaria seu chefe, que convocaria o grupo dos odores, para saber se aquilo era mineral ou vegetal, se fosse mineral poderia ser um meteorito se fosse vegetal, uma árvore caindo, assim todo o grupo precisaria sair do lugar. Se fosse animal, então sairia o grupo odoríforo e entraria em cena o acústico, para saber se a forma animal emitia um ruído grave ou agudo ou nenhum. Em seguida os chefes dos 3 grupos se reuniriam para avaliar a situação como um todo, e de posse dos dados, poderiam facilmente discernir a natureza do perigo e dar o alarme na hora oportuna.

Os problemas começaram na hora de escolher os diferentes cargos. Todas queriam ser chefes de grupos e, assim, se armou um enorme berreiro no brejo onde estavam, quando se supunha que deviam observar o mais completo silêncio. Quando se ouviu uma voz vinda de uma árvore.

                – Podem dormir sossegadas, vocês estão em meu território e ninguém vai incomodá-las.

Todas as panteras levantaram a cabeça e duas bolas amarelas e incandescentes lembraram-lhes que aquela fera negra continuava oculta entre as folhagens.

Ao se perguntarem como aquela fera podia falar a língua das panteras, ouviram dela que ela seria uma delas. Quando a dúvida e a incerteza pairava na mente de todas, a fera negra disse:

                – Minha mãe foi morta pelo grande búfalo eu sou aquela que sempre olhava para o sul.

Boquiabertas eles entenderam que se tratava da órfã. Era difícil acreditar. Mas ela disse o nome de cada uma delas e ao descer seu cheiro confirmou. A colérica, que a dava por morta, era a mais impressionada de todas.

Assim, a pantera negra contou sua história de como chegara até ali, seguindo um bando silencioso, contou como aquele bando anda pisando exatamente onde a pantera a sua frente pisa e a última vai apagando as pegadas, não deixando rastro nenhum pelo caminho. Contou como sua pele mudou de cor ao seu tocada pelo focinho de uma outra pantera negra. Disse que ninguém sábia onde aquelas panteras estavam, pois não deixavam rastros e só andavam de noite. De repente começou a rir, a gargalhar e quando conseguiu falar disse que de longe percebeu que eram elas. E começou a rir fervorosamente, de chorar e doer a barriga quando foi falar do jeito que elas foram atacar os sapos.

Feridas em seu orgulho, queriam que aquela pantera fosse tragada pela terra, onde rolava de rir, e se lembraram porque ninguém gostava dela. Essa antiga aversão era reforçada agora pela visão de musculatura e evidente robustez. Sentiram vergonha de seu aspecto esquelético e deram graças à noite que ocultava suas tristes figuras.

                – Nós fomos prejudicadas pela hora pouco propicia. Disse uma. E pelo vento, disse outra. E pela inclinação do mato resmungou outra.

                – Pois é, disse a negra.

                – Deve ser desagradável ser negra assim provocou uma das panteras.

Olhando para cima a pantera negra então disse:

                – A gente descobre que sempre foi negra assim sem saber e que para ser negra de verdade basta ir ao coração da selva e parar de imitar os leões.

Essa outra farpa, mais penetrante que a anterior, voltou a machucar o amor próprio do panterio. Que fingiu não entender essa história de imitar os leões.

                – Pois é, disse a negra, quem as panteras imitam em tudo? E para quem ficam se exibindo o tempo todo? Para os leões.

Um senso de indignação correu pelo panterio, que em negação protestou aqueles dizeres. Mas a farpa já tinha penetrado fundo em seus corações e um silêncio duro quanto uma noz se instalou entre elas.

Para quebrar o clima, uma perguntou o que havia no coração daquela selva. A negra, com ar embevecido disse que no coração da selva tudo era repouso, calma e voluptuosidade. O clamor da selva, de repente se pagava e era como entrar em outra selva mais escura e mais secreta.

                – Como se chega lá?

                – Chegando e não chegando, disse a negra.

                – Como assim?

                – Entrando e não entrando, respondeu. Só quem conhece a floresta pode entender o que eu estou dizendo. E assim, a negra se levantou e disse que ia se retirar para lanchar e ofereceu a gazela ao panterio, que com o pouco de orgulho que ainda lhe restava, declinou.

A pantera negra com um incrível salto subiu em uma árvore e antes de partir disse que as hienas caçam ali de dia e não gostam que outros animais cacem a luz do dia e que era melhor que elas o fizessem a noite, enquanto as hienas dormem.

                – Mas como poderemos caçar a noite, não enxergamos nada!

                – Se você enxerga só por enxergar, não vê nada. Mas se enxerga para caçar, vê melhor que de dia. E assim ela partiu, saltando de galho em galho até não ser mais ouvida.

                As panteras se aproximaram da árvore e olharam para cima, mas a órfã tinha desaparecido.

                – Sumiu. Será que a ofendemos? Perguntou uma delas, sem se a atrever a chamar pela órfã com medo de atrair outros animais.

                – Quem sabe. Respondeu outra.

                Voltaram a olhar para a árvore, mas já era noite e não enxergaram absolutamente nada.

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