27012009_Produção de borracha é alternativa para agricultura familiar no estado Os resultados positivos nos experimentos com o cultivo da seringueira pela Pesagro-Rio, Empresa de Pesquisa Agropecuária –, vinculada à secretaria estadual de Agricultura, em Silva Jardim e em Valença, estão comprovando que a planta é tecnicamente adaptada às condições agrícolas fluminenses. Fotos:Divulgação

A travessia da experiência com a ayahuasca aconteceu nos seringais amazônicos, nas fronteiras amazônicas onde a cultura dos curandeiros interagia com experiências de vários projetos de integração nacional, seja pela extração da borracha no século XIX e XX ou pela expansão da fronteira na década de 1970.

Eram regiões que podem ser consideradas verdadeiras ilhas movediças, pois somente na passagem do século XIX para o XX foram inseridas em um ‘projeto nacional’, como o atual estado do Acre, que até aquele período poderia ser classificado como ‘zona-não-descoberta’, um território que oficialmente não pertencia a nenhum Estado Nacional, pois não há sua existência em nenhum mapa oficial do período.

Obviamente foi contestado pelos governos do Brasil e da Bolívia, ocorrendo até mesmo uma guerra por sua posse em 1889, quando nordestinos em sua maioria, reivindicaram autonomia perante um consórcio capitalista internacional que literalmente havia alugado o território cujo ‘protetorado temporário’ estava sob domínio da Bolívia.

Este consórcio era o “Bolivian Syndicate”, formado por empresas dos EUA, Inglaterra, e Alemanha. O tal sindicato arrendou legalmente o território, cujo contrato autorizava a colonização da região, incluindo a exploração do látex e demais recursos naturais, inclusive com a formação de uma milícia armada (!!!).

O conflito era iminente, os seringueiros seriam ‘presas fáceis’ nas mãos dos senhores de capital, terras e de gente – estrangeiros, brasileiros ou bolivianos. Por outro lado, na fronteira brasileira, outros donos do poder almejavam o domínio da região, sonhando com as fortunas que poderiam alcançar explorando a borracha e outros recursos naturais. Assim, um poderoso barão se interessou pela guerra, armando os seringueiros e alguns líderes que se dispuseram a causa, era o “Barão do Rio Branco”, homem forte e poderoso nas rodas de Manaus e demais paragens do Amazonas.

Para os trabalhadores degredados e muitas vezes cativos a única alternativa era lutar pela sobrevivência e pelo sonho de liberdade. Acreditando poder encontrar melhor sorte no lado brasileiro. O conflito estourou, líderes se destacaram e em 1903 o Brasil é vitorioso. Em 1910 a produção de látex havia crescido de forma sem precedentes, chegando ao pico de 47 mil toneladas de borracha silvestre ao ano, uma grande riqueza que logo seria escoada para longe da região, e justamente por isso os seringueiros tiveram que desenvolver estratégias de sobrevivência, sempre em busca da manutenção da saúde em junção da aura encantada da sobrevivência dos povos da floresta. Novos retirantes foram arregimentados no Nordeste eram os chamados soldados da borracha, entre eles estava Raimundo Irineu Serra, que por volta de 1912 foi trabalhar como seringueiro por essas regiões.

Vale lembrar que somente na década de 1960 o Acre foi incorporado ao Território Nacional enquanto Estado Autônomo, assim podemos refletir sobre a complexidade da região. Acima de todas as autoridades constituídas pelo poder público, os curandeiros eram líderes e conselheiros de comunidades isoladas e abandonadas. Teria sido no Alto Abunã o local de encontro da ayahuasca com os peregrinos e despedida de seu velho mundo.

Os seringais foram o ‘caldeirão da ayahuasca’, os portadores da sabedoria antiga foram os curandeiros e os aprendizes foram os nordestinos. As experiências humanas de singulares percepções da realidade nasceram da simbiose de interações sociais, dinâmicas e autenticas, entre a livre articulação da linguagem, das mãos e das idealizações mentais, num ambiente longínquo das pressões fabris da industrialização.

A experiência do curandeirismo amazônico foi experimentada pelo viés cultural de proximidade entre o que se compreende por mundo espiritual e mundo material, nessas culturas, ambas dimensões da realidade se interagem o tempo todo, sendo as experiências cotidianas derivações das experiências espirituais, desde a doença à cura.

Essa experiência parte de um contexto onde a relação homem-natureza é valorizada em uma interação harmônica, de equilíbrio e respeito, o homem se compreende enquanto parte ativa e viva desta natureza, que é sagrada. Ao perceber a natureza enquanto um ente sagrado, os elementos naturais são compreendidos enquanto manifestação dos espíritos superiores. Ao trabalhar com os elementos da natureza para a cura de uma enfermidade, os curandeiros (ou os xamãs, feiticeiros, bruxos, magos e ‘mestres’) compreendem que estão realizando afazeres sobrenaturais.

Ao estudar a tradição do curandeirismo em seringais da Amazônia percebemos que o curandeiro vale-se do conhecimento de um sábio, que tem em sua memória sua vida! A velhice lhe é algo divino, é a experiência que lhe confere autoridade e conhecimento, experiência em núcleos humanos onde a honra é a fundamental expressão de sua vida. É ela que lhe confere autoridade e respeito, e esta honra só é adquirida por meio da vida, da conduta em toda uma jornada existencial, onde a memória de toda a comunidade é o centro do julgamento, o pajé cura ou não cura, a reza de um ancião é ou não é um ‘portal divino’. Todos saberão se a saúde melhorou. Ao longo de uma vida a memória atua praticamente como um ente vivo.

A cura se inicia pela interação entre os elementos humanos e extra humanos, naturais e sobrenaturais, desde a colheita das plantas, não sendo esta, portanto, um mero feito braçal, se revestindo de uma ‘aura mágica’. A ligação do curandeiro com o divino é direta, não necessitando de um intermediário ou outro mensageiro, uma vez que a união entre os planos ‘materiais e suprassensíveis’ se torna real em sua representação cosmológica, posto que a crença se fortalece pelo ritual. O curandeiro confiando em sua tradição, no legado herdado, liga seu pensamento “em Deus na cura”, para levantar quem está precisando levantar. A confiança nos elementos da natureza é a chave dos segredos aos ‘planos superiores’ ao respeitar a própria planta enquanto um ente sagrado, sua percepção identifica o ‘poder divino’ em cada partícula da vida. A união entre o conhecimento dos segredos dos elementos naturais, com a aura de uma cultura encantada, é essencial para a permanência milenar dos povos da floresta. Foi por causa dos curandeiros que habitam os seringais em um processo de extração da borracha, que  esse conhecimento chegou até aqui.

Os primeiros ‘caboclos’ são descendentes de ‘índios’ que ‘vestiram roupas’ e começaram a falar português, a rezar o terço e se mudaram para longe das aldeias. Quando retirantes nordestinos chegaram, ocorreu nova efervescência no caldeirão da ayahuasca, os ‘novos caboclos’ se tornaram filhos da floresta, por necessidade, sonho de riqueza, mas também por reconhecimento e identificação. Será com eles que a ayahuasca fará a travessia definitiva, partindo da floresta para os centros urbanos.

Ao estudar as experiências históricas nos seringais, partimos do olho do xamã, para compreender um passado distante que hoje fulgura em nossa memória enquanto imagem de uma ‘época estranha’, investigando os reflexos das transformações da modernidade na constituição de um movimento que se criou e é criado em um processo vivo, centrado na troca de experiência por meio de relações de cura.  

Assim compreendemos a experiencia social de uma comunidade especifica que germinou sobre as bases da nova forma de comunhão da ayahuasca. Raimundo Irineu Serra foi seringueiro que enfrentou severas condições de existência, como todos de seu tempo naquele local, lutou pela sobrevivência, superou a fronteira da morte, recriando a vida e o sentido de sua vida e fundou as bases de uma tradição reconhecida como religião única ao Brasil (a exemplo também da UDV posteriormente).