Um breve panorama da pesquisa transdisciplinar sobre Ayahuasca.

Marcelo Bolshaw Gomes [1]

O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), órgão do Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da União, dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca – bebida de propriedades psicoativas utilizadas por diferentes cultos brasileiros (Santo Daime, União do Vegetal, a Barquinha – para citar os principais) do norte do país. A decisão do governo brasileiro cria uma jurisprudência internacional importante, contradizendo os pareceres da Suprema Corte dos EUA e assinalando que o Brasil está rompendo com a política de subserviência ao DEA (Drug Enforcement Adminstration). Por outro lado, a resolução proíbe o uso terapêutico da bebida, bem como seu uso recreativo associado a eventos turísticos. Além disso, a resolução estabeleceu regras para que a bebida seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso.

A decisão desencadeou algumas reportagens jornalísticas sensacionalistas, acusando o governo de ter liberado uma droga perigosa que “causa alucinações” sob a desculpa de uma pretensa finalidade religiosa. Respondendo a essas reportagens, o presente texto tem por objetivo explicar psicologicamente a experiência cognitiva de beber Ayahuasca, como também apresentar de forma resumida a singular pesquisa acadêmica e existencial desenvolvida por diversos pesquisadores a partir dessa experiência cognitiva, comprovando assim seu valor inestimável.

1) O efeito da Ayahuasca

Há uma grande diferença entre as distorções cognitivas provocadas por entorpecentes e o uso ritual de plantas de poder. Diferenças de intenção e ambiente – “set and setting”, na famosa definição estabelecida por Timothy Leary e muito repetida desde então para caracterizar as condições necessárias para o uso de substâncias psicoativas em processos de autoconhecimento. O efeito deste uso ‘com finalidades de desenvolvimento’ é chamado de ‘enteógeno’ em oposição ao termo ‘alucinógeno’ – utilizado para caracterizar o efeito alienante e a distorção perceptiva. Mas, os argumentos de ‘ambiente’ e ‘intenção’ raramente são suficientes para convencer leigos (e cientistas fixados no fator psico-químico) da grande diferença cognitiva entre a experiência enteógena e a viagem alucinógena.

Há duas iniciativas de ponta em âmbito internacional que estudam o ‘efeito ayahuasca’ do ponto de vista psico-químico: Rick Strassman (2001), que estuda a substância psicoativa da DMT (a dimetiltriptamina) e não a bebida propriamente dita ou os sistemas de crenças que configuram seu uso; e Benny Shanon (2003), que, invertendo a equação científica, não investiga mais o ‘efeito ayahuasca’ na mente humana, mas sim pesquisa a consciência através da experiência da Ayahuasca.

Strassman (2001) diz que o corpo produz naturalmente DMT na hora da morte para favorecer a lembrança dos momentos marcantes da vida. O xamanismo tolteca chama isto de ‘recapitulação’ e corresponde a limpeza dos vínculos cármicos adquiridos durante a vida. A DMT permite a utilização consciente da memória visual através do lado direito do cérebro, em oposição à nossa memória discursiva ordinária organizada através da fala. É a fala que transforma a memória em narrativa, se simplesmente contarmos nossa estória, oscilaremos entre os papéis de vítima e de herói. É o hemisfério esquerdo do cérebro que acessa a memória e quer comunicar a lembrança resgatada a alguém.

Com a DMT, ao contrário, feita em estado de silêncio interior, sem interlocutor ou escuta analítica externa, as lembranças emergem objetivas, permitindo a reintegração emocional dos momentos vividos com distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por outra pessoa.E essa pode ser a principal aplicação terapêutica da DMT em um futuro breve: fechar (reviver e superar) as feridas emocionais que jorram do inconsciente individual. O acesso consciente à memória visual também pode ser colocada sob a forma de ‘sonhos lúcidos’[2], isto é, a ocorrência de estado de funcionamento cerebral de alto desempenho – o sono REM (rapid eye moviment) – que normalmente acontece enquanto o sujeito está dormindo, durante o estado de vigília[3].

Vários místicos tradicionais opõem sonho e consciência. A consciência está sempre presente no aqui e agora. O sonho é memória passada e previsão do futuro. O sonho lúcido (ou o Estado de Consciência Alterada através da DMT) é visto por eles como uma alucinação a ser vencida pela consciência, como uma passagem por reinos intermediários ou como realidades subjetivas que aprisionam a alma. O xamanismo em suas diferentes versões, no entanto, acredita no desenvolvimento através dos sonhos.

Para Strassman, há quatro estágios progressivos do efeito do DMT: o estado eufórico, o ‘caleidoscópio colorido’, o estado de diálogo com as entidades e a transcendência do ego. Para isso, ele teria que trabalhar suas dosagens cada vez maiores de DMT. A experiência, no entanto, comprova que o mero aumento de dosagem química não basta para se alcançar estados de percepção mais profundos e intensos, é preciso também ter a ligação espiritual – que só vem através de treinamento em alguma técnica ou ritual. Aliás, quando maior a capacidade mental de alteração o estado de percepção, menor a dosagem necessária – como pode ser visto na maioria dos adeptos mais antigos dos cultos.

2) Supercognição

“Eu só miro as situações em que estou envolvido” – confessou-me certa vez um experiente ayahuasqueiro. E, certamente, as imagens psíquicas, sejam elas arquétipos universais ou lixo subconsciente, em nada ajudam ou enriquecem a experiência espiritual da DMT. O importante é compreender o quadro de relações (sociais, cósmicas, afetivas, políticas, etc) em que se está inserido.

E mais: “Mirar com firmeza resolve os problemas” – me ensinou o caboclo. A ‘firmeza no mirar’ é permanecer em estado de consciência alterada intenso, profundo e por longos períodos de tempo (e baixas dosagens de DMT) e conseguir reverter as relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem. A idéia de ‘miração’ ou ‘sonho lúcido’ (e de diferentes estágios progressivos do transe quimicamente induzido) não pode ser desvinculada do sistema de crenças do sonhador em seu contexto diurno.

Eu, por exemplo, reconheço quatro paradigmas diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem contra o mal; o paradigma de ajuda aos espíritos sofredores vivos e mortos; o paradigma de diálogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o paradigma da Consciência da Divindade (ou da recapitulação da biografia pela consciência/identificação com narrativas míticas e simbólicas).

O modelo de estágios progressivos de estados de consciência de Strassman tem seu valor, mas é preciso perceber que ele também se baseia em um sistema de crenças, mesmo que sejam crenças científicas céticas.

Outra grande contribuição ao estudo do Ayahuasca é o trabalho de Benny Shanon (2003), que faz um levantamento estatísticos das imagens psíquicas geradas a partir da experiência do Ayahuasca. Shanon tornou-se muito conhecido devido sua hipótese de Moises teria acidentalmente consumido DMT (uma vez que a Arca da Aliança seria de Acácia, um tipo de jurema) e entrado em transe no Sinai.

Shanon destaca ainda quatro aspectos relevantes em relação ao efeito do Ayahuasca: a percepção do pensamento como uma cognição coletiva, a indistinção entre o interior e o exterior, as experiências desindentificação pessoal e a percepção de tempo não-linear. Sob o efeito da DMT os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e águias são freqüentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal.
Desses quatro aspectos relevantes o mais interessante é o que trata de nossa percepção do tempo. Quando baixamos arquivos no computador percebe-se que alguns segundos demoram mais que outros, em função do peso do arquivo e da aceleração da conexão da internet[4]. O que Shanon suspeita é que o mesmo acontece com a memória humana, mas só é perceptível sob o efeito da DMT. É a pesquisa da mente humana através da experiência do ayahuasca (e não mais do ‘efeito ayahuasca’ na mente).
Tanto Shanon como Strassman enfatizam a idéia de tempo descontínuo. A DMT nos recoloca novamente dentro da simultaneidade. Com base nessas pesquisas e em minha vivência pessoal pode-se dizer que a experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros.
Segundo o professor Oscar Calávia Saez (2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que o ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘cinema do índio’, a ‘televisão’ do índio e até ‘o avião do índio’. O ayahuasca é o que permite uma visão ao longe e media o modo de ver o universo em seu conjunto. Todavia, além de ser uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço, o Ayahuasca teve (ou tem) outro função menos evidente: criar uma linguagem xamânica comum entre grupos étnicos diferentes.
O que eram praticas xamânicas muito diferenciadas tem se transformado, talvez nos últimos 100 anos, numa espécie de ecumene indígena organizada em volta do uso da ayahuasca e dos cantos que acompanham esse uso. O xamanismo dos Shipibo-Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa, dos Yaminawa, dos Kampa, não são mais o que poderíamos chamar de xamanismos locais, étnicos, pertencentes a um pequeno grupo etnolingüístico. Há muito tempo que esse xamanismo se transformou numa linguagem comum, num mundo extremamente comunicado onde as canções da ayahuasca se transmitem de um grupo a outro. Enfim, a ayahuasca tem contribuído de modo muito importante para dar forma a um xamanismo que, apesar pensarmos que é extremamente antigo, provavelmente adquiriu a sua forma atual com a expansão, através da comunicação, da tradução facilitada pelo uso desse veículo, da ayahuasca.
Hoje, vendo os hinos do Daime cantados em vários idiomas, não se pode deixar de pensar que se trata do mesmo fenômeno. Segundo Saez, os Yaminawa quando bebem Ayahuasca, além das canções em línguas exóticas, entoam as canções em sua própria língua de um modo diferente. “É um modo de tratar a língua de uma qualidade poética minimalista realmente surpreendente e lembra os poemas curtos japoneses, Hai-kai’s; evocando detalhes infinitesimais que existem nas folhas, na pele dos animais.” Experiência estética semelhante a dos hinos do Daime cantados em português mundo a fora. As pessoas cantam e compreendem telepaticamente o conteúdo, mas não sabem o que exatamente significam. “Aprender a tomar ayahuasca significa aprender a entender esse modo de poesia”.

3) Revisando as revisões

Uma boa introdução à pesquisa do Ayahuasca é o livro Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico (2008), de Beatriz Caiuby Labate, Isabel Santana de Rose e Rafael Guimarães dos Santos. O balanço das pesquisas realizadas sobre Santo Daime, Barquinha e UDV, contabilizou 52 livros (13 em inglês), 35 dissertações de mestrado, sete teses de doutorado, nove pesquisas em andamento e um número incalculável de monografias e artigos – em 11 áreas distintas de conhecimento.

Os primeiros artigos são dos anos 50. O marco fundador do campo na academia é a tese O Palácio de Juramidam (1983), de Clodomir Monteiro. Em 1984, Alex Polari, Cefluris, lança seu 1º livro. Em 1986 saiu o primeiro artigo acadêmico sobre a UDV, do Anthony Henman, em uma revista mexicana chamada América Indígena. Em 1993 foi realizado o Hoasca Project. A Barquinha tem seu primeiro livro em 1999. A década de 90 é marcada pela expansão do campo de estudos no Brasil e, a partir do ano 2000, começam a ser produzidos trabalhos no exterior. Outro marco importante é a pesquisa, realizada em 2003, sobre adolescentes da UDV. Os estudos sobre Ayahuasca hoje se multiplicam em progressão geométrica, levando os autores a declarar de que a “lista já nasce desatualizada, porque enquanto estamos falando tem alguém publicando alguma coisa”. E, de fato, de lá para cá várias teses, dissertações e monografias foram defendidas, diversos artigos científicos e ensaios foram escritos em nome da Pesquisa do Ayahuasca. [5]

Gostaria de destacar algumas iniciativas recentes. Ayahuasca: uma experiência estética (2009), de Rafael Barroso Mendonça, dissertação sobre a adequação entre o estado visionário e as práticas de vida do usuário, o modo de subjetivação do indivíduo. Uma etnografia ayahuasqueira nordestina (2009), de Wagner Lins Lira, uma análise etnográfica de duas dissidências nordestinas do Santo Daime e da UDV – a Sociedade Espiritualista União do Vegetal, localizada no município de Riacho das Almas (PE) e o Centro de Harmonização Interior Essência Divina, situado em Riacho Doce (AL) – buscando compreender suas relações empatia e oposição com as antigas matrizes ayahuasqueiras.

O trabalho mais interessante é o de José Eliézer Mikosz, A arte visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (2009). Mikosz estuda várias formas visuais (espirais, mandalas, labirintos, universos em camadas) e suas possíveis significações. Apesar de usar como referência os Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC), em vários momentos aproxima-se bastante da idéia de sonhos lúcidos, de Stephen LaBerge, desenvolvida por Strassman.
A ayahuasca talvez permita entrar no rio mercurial (streaming of consciousness) que corre entre a vigília e o sono, a interseção entre a realidade cotidiana e seu fluido reflexo nos infinitos mundos da imaginação. A ayahuasca, como outras plantas e substâncias psicointegradoras, possui a potencialidade de aproximar o ser humano do lugar, por assim dizer, de onde os mitos procedem. Essa suspeita surgiu pela semelhança da experiência vivida com a ayahuasca e os estados hipnagógicos e mesmo dos sonhos. De onde vêm os pensamentos, são deliberados por volição, são sempre escolhas do “pensador” ou surgem como acontecimentos independentes, interagindo então com o indivíduo? Os devaneios, o estado hipnagógico, este muitas vezes similar às mirações, parecerem se desenvolver em uma corrente de consciência que passa como pano de fundo, independentemente da direção consciente do indivíduo. Essa corrente pode ser comparada a um filme contendo uma mistura de conteúdos pessoais e impressões e experiências vindas do meio ambiente. É possível interagir com esse conteúdo à medida que o estado de vigília vai relaxando seu controle, seja no início do sono, seja pela ação de psicoativos como a ayahuasca. Estudos mais profundos sobre essa característica da consciência certamente trarão conhecimentos maiores sobre os esforços cognitivos da mente. (MIKOSZ, 2009,249 )

Tais pesquisas (entre outras) atestam não apenas a qualidade e a importância do Ayahuasca como objeto de reflexão transdisciplinar, mas, sobretudo, a singularidade e relevância desta produção acadêmica no contexto científico internacional contemporâneo. Ou seja: o Ayahuasca e seu estudo são importantes contribuições brasileiras ao patrimônio da humanidade – algo que escapou ao nosso pobre jornalismo auto-colonizado, que pensou ter encontrado mais uma oportunidade política fácil de criticar o governo federal.

4) Uso terapêutico

No entanto, boa parte da literatura acadêmica mais recente sobre Ayahuasca trata de seu uso terapêutico, principalmente da possibilidade de sua utilização em tratamentos de dependência química, uma vez que já existe um alto de número de ex-usuários recuperados entre os adeptos das religiões ayahuasqueiras.

O texto coletivo Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca (LABATE, SANTOS, ANDERSON, MERCANTE, BARBOSA, 2009) faz uma revisão bibliográfica específica desta literatura e sistematiza as principais reflexões sobre o potencial terapêutico do uso ritual da ayahuasca no tratamento ao abuso de substâncias psicoativas. O texto analisa a experiência de dois centros terapêuticos que combinam elementos da medicina e da psicologia ao uso da ayahuasca: o Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (IDEAA), próximo à comunidade do Santo Daime Céu do Mapiá, no município de Pauini (AM) e o Takiwasi, em Tarapoto, no Peru.

São ainda discutidas perspectivas para uma futura agenda de pesquisas científicas interdisciplinares sobre este tema, refletindo sobre as possibilidades de diálogo entre biomedicina, antropologia e psicologia, além dos impasses éticos e dilemas metodológicos envolvidos neste tipo de investigação.

A aparente melhora de muitos casos de abuso e dependência de substâncias psicoativas, segundo o relato de vários grupos terapêuticos e religiosos voltados para o uso ritual da ayahuasca, bem como de antropólogos, psicólogos e psiquiatras que estudam o tema, representa um fenômeno de saúde promissor. Esse pode ser melhor compreendido a partir de estudos interdisciplinares sistemáticos que combinem a abordagem quantitativa com uma sutileza qualitativa e etnográfica. Tal esforço interdisciplinar deve ser acompanhado também de uma tentativa de diálogo com os saberes nativos, colaborando para que o conhecimento adquirido durante décadas pelos diferentes grupos que utilizam a ayahuasca no tratamento da dependência auxilie futuros estudos clínicos de terapias psicodélicas voltadas para abordar o problema.

Em relação ao uso terapêutico, há três assuntos centrais em pauta hoje: a) a emergência de surtos psicóticos; b) como utilizar o Ayahuasca na recuperação de dependentes químicos; e c) quais são os métodos de trabalho e as técnicas mais adequadas para esta integração.

O ayahuasca tem o efeito de agravamento dos sintomas, ele promove e desenvolve mudanças existenciais, levando as situações contraditórias a níveis críticos. Assim, outro tema correlato ao uso terapêutico do ayahuasca, é que ele desencadeia crises psíquicas e emergências espirituais. A experiência atesta que tais casos tanto podem ser vistos como uma superação de tendências psicóticas como podem causar danos irreversíveis, caso o sujeito das crises não encontre o apoio e a compreensão necessários para entender a situação em que se encontra. O papel da família, da comunidade religiosa e do ambiente profissional é preponderante para a recuperação e a superação das crises.
Daí a necessidade de se estabelecer critérios e parâmetros para propiciar a emergência espiritual de conteúdos psíquicos não se torne uma psicose ou uma esquizofrenia irreversível.

Movidos por esta preocupação a resolução do CONAD prescreve – e muitas instituições religiosas acreditam se defender dessas situações através de – uma rigorosa entrevista (chamada incorretamente de anámnese), que realizada de forma burocrática por pessoas despreparadas faz uma triagem preconceituosa e de baixa qualidade. Uma entrevista preliminar com as pessoas que vão tomar ayahuasca pela primeira vez é fundamental para o aproveitamento adequado da experiência, mas não deve tentar enquadrar os entrevistados em categorias de risco, pois essa prática além de moralista e politicamente incorreta é ineficaz no sentido de identificar comportamentos problemáticos ou possíveis emergências espirituais.

A verdade é que nada substitui uma conversa franca e compreensiva. Mas do que perguntar, o entrevistador deve responder as dúvidas e questões postas pelo entrevistado. E mesmo que identificados fatores de risco nos entrevistados, isto não deve ser motivo para exclusão ou para constrangimento, mas sim como uma informação relevante para compreensão do processo de transformação que se iniciará. A responsabilidade é mais importante do que o registro de controle.

Como também não basta informar os possíveis prejuízos da utilização de outras substâncias (como o álcool e a cafeína) e de excessos sexuais em conjunto com a ayahuasca, é preciso explicar, sem fanatismo ou superstições, quais sãos esses danos e quais são as conseqüências do uso indisciplinado da ayahuasca.

Porém, se os próprios adeptos dos cultos não obedecerem às prescrições que professam aos neófitos, as restrições necessárias à experiência soarão como hipocrisia e farisaísmo. E se é incorreto tentar escapar às crises antecipadamente pela triagem e exclusão, também é errado tentar encobri-las depois que emergem. Nesses casos, além de um atendimento terapêutico individualizado, deve-se manter a participação do sujeito em crise nos rituais religiosos ou nas práticas terapêuticas de grupo (caso isto seja possível) sem o consumo da ayahuasca ou com doses simbólicas. A exclusão do sujeito em crise do contexto da emergência espiritual (e seu deslocamento para outros cenários – psico-terapêutico ou médico-psiquiátrico) será prejudicial à conclusão satisfatória do processo.

5) Da distinção e integração dos “usos”

Outro assunto recorrente das pesquisas recentes sobre o Ayahuasca é sobre distinção entre as noções de ‘uso religioso’ e de ‘uso terapêutico’ de substâncias químicas que promovem a expansão da consciência. Alguns pesquisadores argumentam que essa distinção – agora oficialmente adotada pela resolução do CONAD – não faz nenhum sentido e que o ‘uso’ indígena seria mais terapêutico e recreativo do que religioso.
Em minha perspectiva, há diferenças: o uso religioso caracteriza-se principalmente por ser vertical, enfatizando a relação entre o Ego e o Eu Superior (ou a divindade); enquanto o uso terapêutico é horizontal, focado na relação entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’. Embora essa seja uma distinção teórica, pois na prática os dois aspectos são indissociáveis, há intenções e ambientes (sets and settings) bem diferentes nas duas propostas.

E essa diferença nos faz levantar várias questões. Por exemplo: será que um dependente químico de drogas não tem maiores chances de recuperação em um paradigma Emoticon smile ambiente + intenção) religioso, em que sua dependência transmuta-se em autonomia espiritual, do que em um paradigma psicológico onde ela pode ser transferida para o terapeuta ou para outros objetos horizontais? Ou ainda: será que Ayahuasca facilita ou amplifica a catarse emocional? Por que a exposição de sentimentos e emoções negativas (como a raiva e a tristeza) tão apropriadas no processo terapêutico pode gerar obsessões psíquicas e espirituais, quando realizada em estados de consciência alterada? O louvor ao sagrado cura devido sua gratuidade, já dar suporte ao desenvolvimento de resiliências (trabalho terapêutico) é uma atividade profissional remunerada – como conciliar essas questões?

O uso religioso objetiva o desenvolvimento ético e moral dos participantes do culto em geral, enquanto o uso terapêutico pressupõe um problema específico a ser resolvido por alguém em particular. Mas, é preciso definir melhor como se pode (e como não se deve) usar o Ayahuasca em uma resistência específica ao desenvolvimento individual e não estabelecer um ‘novo uso’ para a bebida.

A tradição daimista prescreve rigorosamente a não-intervenção, seja a forma de toque corporal ou tentativa verbal de comunicação, quando um participante do culto faz uma ‘passagem’, isto é, encontra com uma resistência em desenvolvimento e sofre algum tipo de mal-estar. Nesta ótica, é aconselhável que ‘a bebida e a pessoa se entendam’ ou que o processo psíquico desencadeado seja resolvido através de uma auto-adaptação da pessoa à situação emergente sem interferências. Tal prescrição é extremamente válida, principalmente no âmbito das igrejas e templos religiosos em que pessoas sem preparação (sem formação profissional específica) podem querer ajudar outras em um momento crítico.

Por outro lado, o uso consorciado da ayahuasca com algumas experiências com mudanças dos padrões corporais se mostrou bastantes produtivas, devido ao relaxamento muscular propiciado pela ingestão da bebida, como as aplicações sucessivas de massagem da técnica desenvolvida por Ida Roofing. Este processo de alinhamento postural pode ainda ser potencializado através de alongamentos e de exercícios regulares diários (de Pilates, RPG ou de Iso-stretching).

Já o uso do Ayahuasca consorciado diretamente às práticas catárticas da bioenergia e das meditações dançantes do Osho não apresentaram (para mim) nenhum benefício visível e certamente podem reforçar, ao invés de dissolver, as resistências psicológicas, sejam elas ‘couraças energéticas’ ou complexos comportamentais. Ou seja: a tradição espiritual desaconselha a prática da intervenção terapêutica no paradigma religioso, mas a experiência psicológica incentiva o uso da DMT como uma forma de intervenção espiritual no paradigma terapêutico. Portanto, não se trata de utilizar técnicas e práticas de outras paragens para ‘completar’ ou ‘aperfeiçoar’ os rituais associados ao Ayahuasca e às plantas de poder brasileiras, mas sim de aprender a utilizar estes rituais e estas plantas em processos terapêuticos. E, dentro de processos terapêuticos, dentro das experiências que organizei e presenciei, o Ayahuasca tem se mostrado muito mais adequado às técnicas de regressão biográfica através de sugestão hipnótica do que, diretamente, aos exercícios de movimento corporal e as massagens voltados para catarse.

Há também outras possibilidades de integração, como as técnicas de roda. A ciranda de vozes e de dança é um suporte de transmissão de memória e conhecimento anterior ao advento da escrita, quando os contextos de recepção e de transmissão de informação eram comuns. A roda centralizava o acesso ao conhecimento e instituía um tempo circular, simultâneo, sem continuidade. Com a escrita (e a memória social), surgiu a história (e o tempo linear baseado na acumulação de informação), os contextos de recepção passaram a ser múltiplos e distintos do contexto da fala. Hoje (graças à Internet) retornamos parcialmente ao tempo simultâneo e a esse suporte arcaico da cultural oral[6].

Ou seja: mesmo com o foco na DMT, percebe-se que os cantos e a dança em roda fazem parte da experiência espiritual do Ayahuasca. A química prescinde de práticas rituais para se realizar com sentido para seus usuários. E o CONAD foi bastante feliz em observar que, sem os rituais e práticas associadas ao culto da bebida, a DMT descontextualizada é apenas uma droga psicodélica que provoca acessos visuais.

6) Conclusões parciais

Quando escrevi o projeto DMT e Neurociências, imaginava desenvolver uma pesquisa acadêmica e não uma investigação pessoal sobre o papel da substância em minha vida. Porém, o transcorrer do trabalho me mostrou que o essencial era eu me conhecer e me desenvolver. E que a pesquisa do Ayahuasca não é apenas um campo interdisciplinar ou multidisciplinar, mas sim um ‘espelho transdisciplinar’ porque implica em auto-conhecimento: as informações científicas só fazem sentido se enquadradas em um sistema de crenças. Assim, para mim, a pesquisa do Ayahuasca passou a ser uma via de mão dupla: questionando minhas crenças em relação à objetividade científica; e, no sentido inverso, repensando a modernidade a partir da experiência cognitiva da bebida.
A resolução do CONAD é a primeira iniciativa legal para a proibição da comercialização do Ayahuasca no Brasil. Agora, o individuo que for pego portando a bebida e não estiver devidamente autorizado por uma entidade civil religiosa legalmente constituída poderá ser detido para investigação.

Só isso já é um grande ganho institucional para o movimento ayahuasqueiro e um avanço extraordinário em termos de clareza política do governo Lula sobre o papel eco-espiritualizante da cultura brasileira no cenário global – embora (quase) ninguém (nesse jornalismo tacanho de nossos dias) elogie este aspecto.

Mas, há também uma contrapartida negativa igualmente não evidente: a regulamentação poderá levar a uma fossilização institucional do movimento, a uma folclorização cultural dos rituais e/ou a um distanciamento cada maior da verdadeira essência do espírito revolucionário do Ayahuasca. A necessidade de regulamentação do movimento ayahuasqueiro está levando a um progressivo enquadramento social dos grupos e a uma atitude conformista em relação a mudanças na sociedade e nas instituições.O que está em jogo não a sobrevivência cultural do Santo Daime, da Barquinha ou da União do Vegetal, nem mesmo o uso indígena ou psiconáutico do Ayahuasca, mas sim, o papel extraordinário que a DMT desempenhou e desempenha na evolução psíquica e biológica humana, como também, o que pode vir a desempenhar no futuro, seja na recuperação de dependentes químicos e de psicoses depressivas, seja no seu desenvolvimento ético e de novas qualidades cognitivas no âmbito da percepção e da consciência. Ou seja: a discussão tem uma importância bem maior do que enxerga a maioria dos envolvidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Rafael Barroso Mendonça. Ayahuasca: uma experiência estética. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2009.
LABATE, Beatriz Caiuby; ROSE, Isabel Santana de; SANTOS, Rafael Guimarães dos. Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico. Campinas: Editora Mercado de Letras/Fapesp, 2008.
LABATE, B.C., SANTOS, R.G., ANDERSON, B., MERCANTEe, M., BARBOSA, P.C.R. Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca. Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), 2009. Disponível em: www.neip.info.
LIRA, Wagner Lins. Os trajetos do êxtase dissidente no fluxo cognitivo entre homens, folhas, encantos e cipós: uma etnografia ayahuasqueira nordestina/ Wagner Lins Lira. – Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Antropologia, 2009.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta – Uma introdução ao estudo de Si. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. Natal: UFRN, 1997.
LIEVEGOED, Bernard. Fases da Vida – crise e desenvolvimento da individualidade. São Paulo: Editora Antroposófica, 1994.
MCKENNA, T. ‘Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado – triálogos nas fronteiras do Ocidente’ (em conjunto com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.
METZNER, Ralph. Ayahuasca – Human Consciousness and the Spirit of Nature. Thunder’s Mouth Press, New York, 1999. Tradução Márcia Frazão, Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.
MIKISZ, José Eliézer. A arte visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). UFSC, 2009.
SHANON, Benny. A ayahuasca e o estudo da mente in: LABATE B. & SENA ARAÚJO W. (diretto da), O uso ritual da ayahuasca, 2002a pp. 631-659.
_______ O conteúdo das visões da Ayahuasca. Revista Mana, Out 2003, vol.9, n.2, p.109-152.
STRASSMAN, Richard. DMT: the spirit molecule: a doctor’s revolutionary research into the biology. Rochester: Park Street Press, InnerTraditions, 2001.
Notas :
[1] Marcelo Bolshaw Gomes é jornalista, professor de Comunicação da UFRN, doutor em Ciências Sociais e moderador da lista
[2] + sobre os sonhos lúcidos: <>
[3] Em 1952, Leitman e Aserinsky (2003) estabeleceram, através de eletroencefalogramas, o ciclo fisiológico do sono, composto por pelo menos três estágios com diferentes propriedades neurofisiológicas: o estágio hipnagógico (início do sono em que os pensamentos consistem em imagens fragmentadas e pequenas cenas), o estágio do sono de ondas lentas (em que as ondas cerebrais do neo-cortex apresenta freqüências baixas e grande amplitude) e o estágio do sono REM. Durante o sono REM, o cérebro apresenta um funcionamento das sinapses cerebrais superior ao estado da vigília em momentos da maior atividade (confronto com perigo, luta pela sobrevivência, contato sexual iminente).
[4] A propósito, todos trabalhos citados podem ser baixados da Biblioteca Virtual dos Pesquisadores do Ayahuasca. <>
[5] A maioria das teses, dissertações e monografias escritas podem ser baixadas da Biblioteca Virtual dos Pesquisadores do Ayahuasca.
[6] O próprio ritual do Daime, o hinário bailado e cantado, é um excelente exemplo de uso da roda de vozes e danças como estrutura trifásica (de movimento, canto e pensamento), como forma de propiciar um aprendizado existencial significativo e de transmitir conteúdos simbólicos, integrado ao paradigma histórico da escrita e do pensamento objetivo.