Particularmente essas três primeiras correntes doutrinárias conseguiram manter ao longo de décadas aquela característica formidável verificada no uso indígena: ayahuasca como ritual, sempre, mas também como importante fator de agregação, de desenvolvimento e fortalecimento da identidade cultural e do sentido de realidade. Ayahuasca que faz com que quem a tome se sinta bem por ser quem é, por estar onde está, em paz com seu tempo e lugar, conectado com sua realidade, seus desafios e seu lugar no mundo.

A expansão da ayahuasca nos grandes centros, com a criação de novas doutrinas e formatos, de novos usos, inclusive o uso explicitamente não ritual e focado apenas nos seus efeitos químicos e objetivos, acabou por revelar aspecto que, conquanto fosse previsível, era (e continua) despercebido: é que aquela característica notável – elemento religioso que não só compõe, mas fortalece a identidade; fator de integração, de elevação da auto-estima individual e do grupo – não é objetiva, não é um efeito automático e necessário da bebida ayahuasca: a só bebida é insuficiente para produzir aquele efeito, aquela característica, ou, pelo menos, na intensidade e duração desejáveis.

É que a só bebida não basta. Se bastasse seria suficiente ingerir DMT (princípio ativo encontrado na ayahuasca) em comprimido. Para além da bebida há o encanto, o mistério, a crença, a cultura: a realidade física mediada pelo engenho e alma humana capaz de criar significados, produzindo algo diverso da pura matéria. Há quem tome ayahuasca acreditando ser possível através dela expandir sua consciência, desenvolver sua criatividade e imaginação, ter novas perspectivas do mundo e de si mesmo, mas esquece que tais efeitos, se há, são resultantes do ritual, da crença, da construção cultural que lhe conforma e não da bebida ayahuasca em si mesma.

Lentamente as pessoas dos grandes centros urbanos do país tomaram contato com a ayahuasca e ficaram deslumbradas com seus efeitos. De logo buscaram doutrinar o mundo inteiro, para usar expressão cabocla. Na pressa levaram só o psicoativo, o substrato material, físico, químico, e deixaram a complexa e delicada prática cultural. Deixaram o encanto, o mistério, o aspecto imaterial e humano que transforma o psicoativo em sacramento, meio de comunhão. Cultura, enfim.

O índio e o uso urbano naquelas primeiras manifestações (UDV, Barquinha, Daime) nunca viram na ayahuasca o psicoativo, o alucinógeno, se por tal entende-se a substância que provoca alucinação, alheia, aliena, tira o senso de realidade, tempo e lugar. Porque não se criou mistura alucinógena: não era este o objetivo, eis que se acredita ter descoberto, mais que criado, meio de comunhão com outra realidade, imaterial.

O foco, intencional ou não, só na química, é que explica porque a ayahuasca, em alguns usos e práticas, não apresenta aquela característica especial, de facilitador extraordinário da integração das pessoas ao seu meio. Ao contrário, apresenta como característica justamente a tendência ao isolamento, como que em fuga desta “sociedade consumista, violenta e injusta”, procurando o retorno à vida na floresta, em contato com a natureza e “longe das tentações mundanas”.

Ao despir ayahuasca de seu conteúdo imaterial, encantador, tem-se mercadoria, sujeita – como tal – à venda, compra, troca. Numa comparação imperfeita, a hóstia pode ser apenas irrisório pão de trigo, sujeita à venda, mas pode e deve ser ato de comunhão, de valor inestimável. A fé é a diferença entre o trigo e o sacramento.

A fé, o sentimento, o simbolismo é que atribui sentido e significado àquilo que é pura matéria, composto químico. A ausência deste elemento é que explica porque se busca concentrar ayahuasca, fervendo seus componentes além do que cada doutrina diz ser o correto. Para a farmacologia há DMT, em maior ou menor quantidade, conforme a proporção de ingredientes ou fervura. Não há certo nem errado: há composição química.

A doutrina, a fé, o sentido de religião é que estabelece limites e regras, dá noção de certo e errado e confere sentido. A ruptura dessas regras e a criação de novos formatos ritualísticos podem ser feitas. Têm sido feitas, mas dentro da lógica interna que mantém o encanto, o mistério, a fé, para não destruir justamente aquele elemento imaterial que transforma, agrega valor simbólico e significado onde muitos vêem apenas mistura química.

Na atualidade há quem faça novas experiências com ayahuasca, como é exemplo, sua confecção com extração de seus elementos químicos de outras plantas ou a partir da sintetização: DMT, harmina, harmalina etc. Obtém-se inevitavelmente substância que atua na mente, alterando percepções, de qualquer modo revolvendo conteúdos profundos da psique humana. Um psicoativo praticamente idêntico a ayahuasca, quimicamente. Mas será só um psicoativo, incapaz de gerar uma doutrina, um corpo de ensinamentos e princípios sólidos, que proporcionem uma visão de mundo consistente e capaz de agregar, de integrar e estimular o homem a viver com seus semelhantes de modo melhor.

Há outras construções culturais, igualmente complexas e delicadas, que fazem uso de substâncias consideradas psicoativas e que, nos tempos atuais, foram ou estão sendo igualmente distorcidas, esvaziadas de seu conteúdo imaterial e transformadas em simples fármaco.

O peyote é exemplo deste fenômeno: de uso ancestral pelos índios americanos e mexicanos, travou contato com a sociedade de mercado, onde a religião é mais um produto e hoje pode ser adquirido pela internet, individualmente ou em pacote com outros psicoativos, em verdadeiro coquetel. Também com essa substância ocorreu o mesmo fenômeno: houve quem enxergasse no complexo e sutil ritual indígena só a farmacologia. Levaram, de novo, o psicoativo; deixaram o mistério, a cultura, a fé.

A convenção de Viena, de 1971, da ONU, já previa a possibilidade de excluir da ilicitude as substâncias utilizadas de modo ritual . No Brasil, mesmo durante a vigência da Lei 6368/76, que não previa tal hipótese, o Conselho Federal de entorpecentes – CONFEN, enquanto órgão que definia, para efeito normativo, as substâncias que deviam ser consideradas drogas para efeito de repressão, permitiu o uso ritual da ayahuasca. Também o Conselho Nacional Antidrogas – CONAD, órgão que substituiu o CONFEN, permitiu o uso religioso da ayahuasca. Na atualidade, a Lei 11.343/06, no art. 2º, mais sintonizada com a Convenção de Viena, exclui do conceito de droga, para efeito de repressão penal, a substância utilizada em rituais religiosos.

Todos os textos normativos e decisões que reconhecem o uso ritual da ayahuasca representam importantes conquistas e são instrumentos jurídicos que protegem e salvaguardam o direito à pluralidade, à diferença, à liberdade de credo, fornecendo elementos discursivos e normativos instrumentalizadores de sua defesa e sustentação. Há várias pesquisas das ciências humanas, especialmente da antropologia, que embasam tais textos, enfatizando que o contexto, mais que a farmacologia, é determinante do efeito (nocivo ou benéfico) de dada substância psicoativa.

Tais pesquisas e diplomas legais destacam a propriedade psicoativa das substâncias usadas em caráter ritual, conhecendo tais práticas como merecedoras da tutela constitucional das liberdades, como qualquer outra, em condição de igualdade. Em decorrência não é correta interpretação unilateral ou parcial, que vislumbra – naquele reconhecimento de uma religião – mero ato de liberalidade, tolerância, uma concessão, especial mercê do Estado em face de dado grupo. Há várias pesquisas que, partindo deste referencial, estudam aquelas manifestações como algo excepcional, de como uma sociedade – que reprime drogas de abuso – tolera ou admite pequeno grupo que faz uso ritual de psicoativo, ou uso “controlado”, implicitamente afirmando que a substância em si é “droga”, mas como seu uso está “controlado socialmente”, admite-se.

A possibilidade de um referencial diferente, contudo, é possível, na proporção em que veicularia a perspectiva de quem mantém tradição desde o tempo em que a própria noção de Estado era inexistente; para quem não se sente usando, nem quer usar, psicoativo algum. Seriam interessantes pesquisas que não falassem de como grupos perpetuam ancestral tradição indígena, mas, invertendo o foco, de como a sociedade de mercado ocidental transformou religião antiga ou sacramento em psicoativo, alucinógeno, mais um produto no grande mercado, virtual ou concreto, de psicoativos, comprados na farmácia ou na teia global, em cápsula, gotas, injetável etc.

Enquanto construção humana a ayahuasca também reflete velha questão que diz respeito a considerar, ou não, se a realidade se exaure na sua exata composição física e química. Ayahuasca, enquanto elemento religioso, é bem mais, muito mais do que a folha Psychotria viridis, o cipó Banisteriopsis caapi e água, fervidos ou não: são aqueles elementos acrescidos de uma constelação de pequenos atos, sentimentos, posturas, crenças, hábitos, detalhes, que emprestam significado e valor a símbolos, objetos, natureza, plantas, permitindo a experiência religiosa humana no que de mais profundo e transcendente isto representa.

Em relação à ayahuasca, o grande desafio do século que se inicia será a preservação de sua condição de sagrado diante da ansiosa e voraz expansão já iniciada. O risco, imenso, é que não se aceite o ritmo lento, o aprendizado individual, a construção da relação entre homem e o meio social, geográfico, histórico e moral como requisito para formação de lideranças e crescimento pessoal na própria doutrina, e se crie fast religion, ayahuasca de massa, de péssima qualidade e muita quantidade, farta de DMT, harmalina, harmina, B-carbolina e outros alcalóides, porém pobre de significado, vazia de sentido, desconectada do homem, de seu tempo, de sua realidade. Um psicoativo efervescente legalizado, geralmente inofensivo mas distante, bem distante de suas origens e simbolismo.

E então, retomando o diálogo inicial, talvez a pergunta correta não seja “como o psicoativo se transformou em sacramento”, mas compreender “como o sacramento passou a ser psicoativo na sociedade contemporânea ocidental”.

Jair Araújo Facundes. Juiz Federal – Seção Judiciária do Estado do Acre. Integrou o GMT – Grupo de Estudos Multidisciplinar do CONAD.

Autor: Jair Araújo Facundes
Fonte: aguiadourada.com